Bicudo: “Luta contra tortura prossegue na OEA”

Para jurista, STF interpreta ideologicamente lei da Anistia, expõe Brasil a desgaste internacional e perpetua violência no sistema prisional

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Entrevista a Ana Helena Tavares | Foto: Estúdio Granada

Mais do que um dos maiores juristas do Brasil, Hélio Pereira Bicudo é uma lenda viva na luta pelos direitos humanos. Nos anos 1970, auge da repressão política, ele denunciou, como procurador de Justiça, o “Esquadrão da Morte” — enfrentando, entre outros, o temido delegado Sérgio Paranhos Fleury. Aos 87 anos, ele publica com frequência, em seu blog, breves ensaios em que aborda não apenas liberdades civis, mas temas como o direito à água, os aspectos jurídicos relacionados ao tráfico de órgãos e a luta contra a desumanidade nas prisões brasileiras. Também enriquece o twitter.

“No momento em que estamos conversando, com certeza em algum lugar do Brasil está sendo praticada a tortura”, lembrou Bicudo nesta entrevista exclusiva sobre a recente decisão do STF de manter impunes os torturadores da ditadura. Para ele, trata-se de uma decisão absolutamente equivocada, que estimula a continuidade das sevícias contra prisioneiros comuns e pode abrir caminho, em outras condições, para a própria volta da tortura contra adversários políticos.

A Lei de Anistia precisa ser revisada?

É, muito mais, uma questão de mudança da interpretação. O texto da Lei de Anistia, não permite que os torturadores fiquem impunes, muito pelo contrário. Não acho que haja necessidade de modificar o texto. Basta aplicá-lo como ele é, segundo uma interpretação jurídica e não ideológica.

Alguns dos que votaram pela impunidade no STF– incluindo o relator, ministro Eros Grau, que foi torturado na ditadura – referiram-se à ação dos torturadores como “crimes conexos”. A Lei de Anistia impediria puni-los. Como o senhor interpreta isso?

É lamentável que um juiz da Suprema Corte não saiba o que são realmente delitos conexos. Quando a lei usa um termo técnico, como é no caso – “crime conexo” é um termo técnico em direito penal –, é preciso saber qual sua definição. Os “crimes conexos” são aqueles cujas finalidades são as mesmas do ato principal praticado. Por exemplo, um ladrão entra na sua casa, rouba, e, para evitar que existam provas, incendeia a casa. São dois crimes conexos: o roubo e o incêndio da casa. Há uma identidade de fins: a finalidade era roubar e não ser punido.

Mas se o ladrão entra na casa, rouba, é preso e depois morto pela polícia, não há nenhuma ligação entre um fato e outro, do ponto de vista das suas finalidades. Num, o ladrão queria roubar. No outro, o policial mata o ladrão. Então, você não pode dizer que há conexidade nestes dois casos, pois as finalidades de um e de outro crime são diferentes. É como nesse caso da Anistia. Os opositores do regime cometeram crimes que a lei diz que, depois de algum tempo, não podem ser punidos. Mas se trata de crimes praticados contra o Estado repressor. Ideologicamente, eles não têm nada a ver com os crimes praticados pelos agentes do Estado.

Pode-se dizer, então, que a diferença básica é a finalidade?

Exatamente. A finalidade dos crimes praticados pelas pessoas que eram contrárias ao regime era política. Os crimes praticados pelos agentes do Estado não têm finalidade política. São crimes contra a humanidade e, por esse motivo, imprescritíveis. Quando a Lei de Anistia fala em “crimes conexos”, você não pode interpretar a conexidade senão de um lado e de outro. Quer dizer, você pode ter pessoas que cometeram crimes contra o Estado conexos entre si, mas você não pode ligar estes crimes aos cometidos pelos agentes do Estado para beneficiar a si próprios. Ou seja, os agentes do Estado agem por outra finalidade. No caso, para manter a ditadura.

Alguns juristas e políticos alegam que uma revisão da Lei de Anistia poderia abalar a estabilidade democrática do país, baseada num “pacto de conciliação”. Quebrá-lo seria “revanchismo”. Na sua opinião, esse “ pacto” encontra algum respaldo jurídico e social?

Não houve pacto algum. É um absurdo falar em “conciliação” quando os militares detinham o poder Executivo e o comando do Legislativo. Havia dois partidos, Arena e MDB – o primeiro, o povo chamava de “o partido do sim”, o segundo de “o partido do sim senhor”. Quer dizer, num contexto como esse, você não pode encontrar consenso da sociedade civil com relação à lei que foi promulgada.

O artigo 5º da Constituição reza, em seu inciso XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido”. Já vi juristas usarem este argumento como forma de defender a inconstitucionalidade de uma revisão da Lei de Anistia. Argumentam que a lei não pode retroagir em prejuízo do acusado. Isso é aplicável ao caso?

Não é aplicável, porque existem tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, que dizem que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. Veja bem: não são crimes que se esgotam naquele momento. O homicídio se esgota, mas outros crimes não, como, por exemplo, o sequestro. Você tem pessoas que despareceram e até hoje não se sabe seu paradeiro. Podem ter sido mortas, mas você precisa provar que elas foram mortas para desaparecer o crime de sequestro. É um crime continuado: persiste no tempo. Foi praticado ontem, continua existindo hoje e continuará amanhã. Não existe prescritibilidade desses crimes.

Alguns juristas alegam que, por a Lei de Anistia ser questão exclusivamente brasileira, ocorrida em território nacional, a competência da Suprema Corte é absoluta e a das cortes internacionais, nenhuma. Qual sua posição?

Em 1998, o Brasil reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ela não tem o poder de revogar a decisão do STF. Mas, desde o momento em que o Brasil reconheceu a jurisdição, tem que se submeter à Corte. Porque reconheceu de boa fé, não foi obrigado a isso. Esse reconhecimento vale para todos os crimes que forem a julgamento pela Corte Interamericana e forem imputados ao Brasil. Acho que a Corte Interamericana, de acordo com a sua jurisprudência e conforme já julgou com relação a outros Estados, mostrará que não existe auto-anistia.

Porque o que se busca hoje no Brasil é o reconhecimento da auto-anistia. Um governo que cometeu crimes pode anistiar a si próprio? Isso não existe! Anistia existe para proteger pessoas que num dado momento, por motivos políticos, cometeram crimes. Para pacificar a sociedade, você considera este crimes inexistentes. Mas não os crimes praticados pelo Estado. Isso já se constituiu numa jurisprudência pacífica da Corte Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos. Não tenho dúvida nenhuma de que a corte vai condenar o Estado brasileiro. Não pela manutenção de uma lei — mas pela interpretação errada dada a ela pela justiça brasileira, que vem acudindo os torturadores e aqueles que, a serviço do Estado, eliminaram pessoas durante o período da ditadura militar.

Caso a Corte Interamericana condene o Brasil, quais são os caminhos legais para que a interpretação atual dada à lei de Anistia seja revertida?

Quem pode mudar uma decisão do STF? Só o próprio STF. No caso de uma condenação pela Corte Interamericana, penso que o Ministério Público Federal terá que atuar, fazendo com que esse processo surta efeito no Brasil. A corte não aplica sanções. Caso o Brasil não cumpra uma decisão, ela relata esse fato à Assembléia Geral dos Estados Americanos. Esta, sim, pode punir os países-membros com sanções. Ou pode não punir, porque a OEA é um órgão eminentemente político. De qualquer maneira, acho que a situação do Brasil no que diz respeito aos direitos humanos na área internacional vai ficar muito ruim. Como é que fica o STF? É está agindo contra os direitos humanos e isso poderá ter consequências futuras.

Há algum caso precedente em que o STF reviu uma decisão adotada por si próprio?

Nunca aconteceu. O STF nunca reverteu uma decisão; mas também nuca teve, contra si, ação numa corte internacional. Possivelmente, o precedente terá de ser criado agora.

A eventual manutenção do entendimento do STF poderia contribuir para tornar a tortura prática corriqueira no Brasil?

Acho que sim. No momento em que estamos conversando, com certeza a tortura está sendo praticada em algum lugar do Brasil. Temos lei específica contra a tortura, adotada na década de 1990 mas até hoje na gaveta. A punição dos torturadores da ditadura seria muito positiva para enfrentar esta prática.

Mas ela é importante também por motivos políticos. Uma sociedade que se diz contra a tortura, mas não pune quem a pratica, está se expondo a riscos. Se, num momento político qualquer, houver restrições à democracia – ou distorções, como as que estão presentes em alguns países da América Latina – haverá mais possibilidades de a tortura contra adversários políticos também voltar, porque criou-se a cultura de impunidade.

Observadas as diferenças contextuais, o senhor, conhecido como o homem que revelou e denunciou o “Esquadrão da Morte”, acha que as polícias militares estão preparadas para exercer o policiamento ostensivo?

Não estão. Elas são absolutamente repressivas. Isso vem da própria constituição das corporações, que não é são civis. Estão presas, em seu planejamento, às determinações do exército. Agem na rua como se estivessem numa guerra. O indivíduo é um marginal e o marginal tem que ser morto. É a lei da eliminação. É o que está acontecendo em São Paulo, por exemplo, com o aumento de homicídios pela PM de cerca de 40%, com relação ao ano passado.

Há cerca de uma ou duas semanas, neste Estado, um civil foi morto por policiais militares dentro de um quartel. Simplesmente levaram o rapaz lá para dentro e mataram. Um outro foi morto a pancadas na frente de sua casa e diante da mãe. Foi em dias diferentes. Eram dois motoboys, que não estavam armados; dois trabalhadores que foram mortos. Agora vamos ver se as pessoas serão processadas e punidas de acordo com a lei. Tenho minhas dúvidas…

Como enfrentar esta truculência policial?

Enquanto não se transformar a polícia num organismo civil, com carreira única e com profissionalismo policial, termos o que está acontecendo hoje em São Paulo e no Brasil. Essa truculência é herança da ditadura.

Quer dizer, ainda há no Brasil figuras que se assemelham ao delegado Fleury?

Há sim. Basta observar que há, nos grupos de extermínio, muitos policiais militares.

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8 comentários para "Bicudo: “Luta contra tortura prossegue na OEA”"

  1. Conhecí o dr Hélio qdo se candidatou a dep. federal. A Igreja toda trabalhou por sua eleição e ele foi o mais votado na região. Deixou muitas lembranas saudades. Os padres ainda se lembram com carinho de sua presença sempre gentil carinhosa. `Pessoas como o senhor são eternas. Como gostaria de tê-lo novamente em nosso meio. Saudadesss……….

  2. Maria Morrison disse:

    Ana,
    Parabpens excelente materia, sou leiga e na verdade, eu me prendo e
    foco e concordo plenamente, da anistia aos torturadores praticamente no meu entender quase legitimar a torturam que ainda é muito forte díaria com pobres, negros , nas favelas e delegacias e prosões.
    Pelo meu bom senso é incabivel anistiar verdadeiras barbaridadesm
    atrocidades, é algo vergonhoso, eu lamento profundamente está
    anistiam é incabivel e indefessavelm sob qualquer angulo, alias qualquer tortura é indefessavel ao meu ver, gostei também da aula , vários
    termos que me deram um angulo maior de visão, nais a minha fixação
    é realmente tomar atitudes legais, contra as atrocidades ocorridas nos DOI-CODI e outros.
    Abriu uma pequena esperança de ver a Justiça ser feita, pois amargo
    enorme desgosto e frustração com meu país em continuar a perpetuar isto desda escravidão, me trouxe uma preocupação imensa com
    a tortura poís como jpa escrevi, ela quase foi legitimada, e tudo piorou.
    Será que meu aís um dia fará parar de sofrer seus filhosm de formas arbitrarias e covardes, será que nunca vamos sair deste estágio ao qual , ao contrário está virando banal, a verdade que este Governo
    como outros entraram para as páginas negras da Hístória, como outros,este Governo a nivel de DH, é lamentável.Diz o poeta nem todas as lutas são vãs, será? será no Brasil, que orgulho posso ter
    do futebol?!! E meu povo, como fica, completamente traumatizados com os anos de chumbo e com tanta injustiça que recuaram. jovens alienados.
    Bom muito obrigada pela materia tão esclarecedora.
    E mais um vez parabéns.

  3. Roberto Pereira disse:

    Puxa, ainda há vida inteligente e pessoas dignas neste país.
    A decisão do STF foi indecente, jamais imaginei ver a mais alta corte de justiça do país gozando de todas as prerrogativas de um regime constitucional, coonestar a tortura.
    Foram muito levianos ao fazê-lo.
    Não estiveram – com exceção dos dois ministros que honraram seus cargos – à altura do posto que ocupam.

  4. Marcelo Nogueira disse:

    Ana Helena,
    Estou impressionado mais uma vez com sua capacidade de formular um questionário extremamente técnico e interessante abordando, por exemplo, os efeitos de competência absoluta versus relativa funcional e jurisdicional.
    O apanhado de garantias constitucionais, além das respostas em si, denotam qualidade que merece reconhecimento e respeito por todos.
    Parabéns e continue sempre assim! Mais e mais sucesso!!
    Abraços, Marcelo

  5. Excelente entrevista, Ana! Trouxe uma série de informações diferentes das que estão circulando por aí, ajudando-nos a entender melhor o que está por vir.
    Parabéns!

  6. Impecável, como sempre, a posição de nosso ilustre mestre Hélio Bicudo. Uma amostra de lucidez, pois explica de uma maneira simples porém muito rigorosa, a definição de “crime conexo”, algo que vários de nossos famosos togados tem dificuldade em entender, ou simulam não entender. Também é uma mostra de esforço, porque manter-se atualizado nas aberrações do Supremo é cansativo.
    É fundamental que se tenham em conta, como o mestre Hélio faz, a permanente atualização dos crimes contra a Humanidade. As atrocidades não acabaram com a ditadura e, para o povo mais humilde, talvez até possam ter aumentado. Os crimes de policiais substituem e ultrapassam, os crimes dos militares. A tortura que era aplicada como vingança contra a esquerda ou para obter informação, agora se tornou “recriativa”
    O tratamento do caso na CIDH e na Corte Interamericana é fundamental, mas todas as pessoas que têm acesso à comunicação alternativa, via Internet, devem reforçar sua propaganda.
    Também é fundamental uma grande propaganda internacional. Há nos países democráticos muitas ONGs influentes que são solidárias com nossas desgraças, e com nossa luta contra o passado do terrorismo de estado.
    A ajuda dessas ONGs foi útil para a Argentina, e pode sê-lo para o Brasil
    Fraternalmente
    Carlos A. Lungarzo (AI: 2142711)

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