Ignácio Ramonet fala ao cineasta Pino Solanas

“Estamos transitando para novo sistema-mundo. É preciso rever relações entre esquerda, comunicação e poder. América Latina é principal centro da mudança política, mas não superou suas dependências”

Cartaz de "A Dignidade dos Ninguéns" (2005), filme de Solanas sobre a rebelião argentina de 2001, a crise da política tradicional e a emergência de novos movimentos

Cartaz de “A Dignidade dos Ninguéns” (2005), filme de Solanas sobre a rebelião argentina de 2001, a crise da política tradicional e a emergência de novos movimentos

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Por Fernando Solanas, em Causa Sur | Tradução: Gabriela Leite

130604-RamonetNascido na Espanha, Ignacio Ramonet cresceu em Tanger-Marrocos, onde seus pais, republicanos, foram exilados após a guerra civil espanhola. Cursou estudos de engenharia na Universidade de Bordeaux e de Sociologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde obteve também o título de doutor em Semiologia e História da Cultura. Na França, foi jornalista e crítico de cinema nos “Cahiers du Cinéma” e “Libération”. Entre 1990 e 2008, dirigiu a edição francesa do “Le Monde Diplomatique” e a revista bimestral “Maniére de Voir”. Ao mesmo tempo, foi professor de Teoria da Comunicação na Universidade Denis-Diderot (Paris VII). Mais tarde, especializou-se em Geopolítica e Estratégia Internacional, sendo consultor das Nações Unidas, catedrático na Universidade Sorbonne de Paris e professor convidado das Universidades Carlos III em Madri, Buenos Aires, Valência, São Petesburgo, Porto Rico e São Domingo, entre outras. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, e da Universidade de Havana.  É co-fundador do movimento ATTAC, que defende a tributação dos capitais financeiros internacionais e da Media Watch Global — Observatório Internacional dos Meios de Comunicação, que atualmente preside.

Foi um dos promotores do Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Entre seus livros mais recentes, podem ser mencionados “A explosão do jornalismo” (2010), “Marcos, la dignidad rebelde” (2001); “Qué es la globalización” (2004) em colaboração com vários autores; “Fidel Castro: biografía a dos voces” (2006) e “La catástrofe perfecta” (2009), além de centenas de artigos. Um dos temas que aborda é o atual “sistema-mundo”, abalado atualmente por acontecimentos imprevistos que explodem com força. Desastres climáticos, terremotos financeiros, crises energéticas e alimentares, transformações tecnológicas, abalos sociais e geopolíticos alimentam insurreições como as dos múltiplos indignados, provocando profundas crises nos governos e nas democracias representativas, como parte de uma crise econômica e financeira de alcance mundial.

Fernando “Pino” Solanas (Wikipedia | site pessoal) é cineasta argentino, autor de obras clássicas do cinema latino-americano contemporâneo, como “Tangos: o exílio de Gardel” (1985), “Sul” (1988), “A Viagem” (1992), “A Nuvem” (1998)130604-PinoMemórias do Saque” (2004) e “A Dignidade dos ninguéns” (2005) e “Terra sublevada: ouro impuro” (2009). Ligou-se desde a juventude, nos anos 1960, a coletivos de produção e distribuição alternativa de audiovisual. Atuou politicamente nas correntes de esquerda do peronismo. Tornou-se, na década de 1990, uma das principais referência da oposição ao governo neoliberal de Carlos Ménem, sendo vítima de um atentado a tiros, que o feriu nas pernas. Disputou a presidência da Argentina em 2007, pelo Proyecto Sur, e é deputado nacional. Seus temas permanentes são as lutas pela democratização das comunicações, garantia da diversidade cultural, recuperação dos serviços públicos (em especial as ferrovias) e apropriação social de recursos como a terra e as riquezas minerais. A seguir, o diálogo entre ambos

Conte-nos sobre seu conceito de sistema-mundo

Penso que estamos entrando em um novo sistema mundo. Ou seja, um ciclo geopolítico termina e começa um novo, com uma série de parâmetros que estão mudando e onde aparecem primeiro os problemas do novo sistema mundo. Surgem de repente, e por isso digo que o novo sistema funciona a golpe de terremotos. Subitamente, tomamos consciência do que está acontecendo; mas isso se deve à brutalidade de um acontecimento. Um exemplo já relativamente antigo foi o 11 de setembro de 2001, os atentados. Bruscamente, tomamos consciência de que no mundo árabe, muçulmano, os problemas alcançam tal dimensão que nos explodem na cara. Da mudança climática, principal problema que põe em questão a existência da humanidade, tomamos consciência quando se produz a inundação de Nova Orleans: de repente uma cidade gigantesca, no país mais desenvolvido do mundo, se vê devastada. A questão nuclear: nos damos de seus perigos quando se produz o tsunami sobre Fukushima e inesperadamente relembramos que o nuclear nunca é local — sempre é global.

No plano geopolítico, repare o que ocorreu no mundo árabe. Países que não se moviam, eram ditaduras controladas pelo Ocidente durante cinquenta anos ou mais (não estamos falando de três, quatro ou quinze anos, mas de meio século de controle) explodem, de forma súbita. Um último abalo: teremos a União Europeia, em mais alguns meses, ou ela também haverá explodido? Teremos ainda o euro, como moeda única de 17 países, ou ele haverá desaparecido em um cataclisma de dimensões apocalípticas?

Estamos, consequentemente, diante de um sistema em que, por uma parte, os dirigentes políticos dão a sensação de que não enxergam o que está por vir; não demonstram a capacidade de previsão que, supõe-se, deveriam ter. Temos a impressão de que não estão à altura da dimensão dos problemas, por várias razões. Em primeiro lugar, hoje os problemas são globais. Vivemos o tempo da globalização. Criticamos e combatemos seu modelo atual, mas observamos que ela se aplica a todo o planeta — e quando você é um dirigente político, sua força se exerce unicamente em um território muito pequeno. Em segundo lugar, vemos que os políticos, global e coletivamente, estão em desvantagem diante dos mercados, porque os tempos de um e de outro não têm nada a ver. Os mercados vão na velocidade da luz, reagem instantaneamente diante de qualquer acontecimento, enquanto os políticos vão na velocidade de um caracol, e antes de reagir, têm que debater — o que é normal, porque o tempo político não é o mesmo. E entre os dois está o tempo midiático, que cumpre o papel de querer solucionar tudo imediatamente.

Estes elementos, que abordei apenas brevemente, dão uma ideia de que estamos em um novo sistema-mundo. Obviamente, nossa missão de intelectuais é tratar de descrevê-lo, para que saibamos que dispositivo político, social, cultural e econômico estamos enfrentando.

 

No mundo midiático comunicacional, a imagem assumiu grande preponderância. Como vê este sistema-mundo diante do comunicacional, e este confrontamento de civilizações através das imagens e das comunicações?

Exato, o que digo é que neste sistema-mundo, a internet não é só uma tecnologia, é um ator da mudança atual. Em quase todos os assuntos que citei, a internet cumpre um papel importante. Por exemplo, nos abalos geopolíticos do mundo árabe; assim como joga um papel na aceleração dos mercados…

Até nos Indignados…

Até nos Indignados, evidentemente. No mercado, cumpre um papel: as ordens de compra e venda que circulam pelas infovias de comunicação. Se falamos do terrorismo internacional, evidentemente as redes de hoje funcionam nesse aspecto. Você tem razão, as imagens funcionam, mas eu diria mais. Hoje é preciso acrescentar um adjetivo às imagens: imagens digitais.

Isso significa que são redutíveis a uma equação matemática constituída unicamente de zeros e uns. A imagem não é analógica mas, essencialmente, uma equação. Por isso, ela pode ser enviada por telefone, por computador, ou projetada em uma sala de cinema, sempre como uma equação; o que permite também que vá praticamente na velocidade da luz. Isso faz com que hoje, na verdade, texto, imagem e som funcionem da mesma maneira; são todos equações matemáticas de zero e um em um sistema binário. Já não têm realidade em si mesmos, já não são necessários aparatos tecnológicos para cada um deles. Antes necessitávamos de um aparelho para o som, um para a imagem, um para a escrita. Esta mudança mescla-se com a internet e nos dá uma capacidade de intervenção que não havíamos conhecido até agora.

A internet está mudando o panorama, é um fenômeno sociológico total como a imprensa também foi: mudou a comunicação, a cultura, o saber, as elites. Mudou a era: o Renascimento não se explica sem a imprensa; e a própria história da religião: o protestantismo surgiu porque se podia ler a Bíblia… A Internet tem uma capacidade de impacto superior à da imprensa. Recordemos que estamos a vinte anos de sua invenção. Estamos na primeiríssima infância da Internet, ela ainda está por chegar e já mudou tudo.

Você vive no centro cultural da Europa, mas tem uma relação privilegiada com a América Latina e os processos emancipatórios deste continente. Quais são os grande debates de hoje? Por um lado, um continente europeu que, como acaba de dizer, não sabe o que vai acontecer amanhã, há uma esquerda europeia que não sabemos onde se situa. O que significa isso hoje?

Penso que a América Latina, em seu conjunto, é hoje uma referência fundamental para a esquerda internacional. Em termos quantitativos, é nela que se leva a cabo o maior número de experiências progressistas no mundo. São inovadoras, diferentes entre si, diferentes das que foram feitas em outros momentos na Europa. Isso nos obriga a olhar para essa direção.

Como isso se manifesta?

Manifesta-se porque a América Latina é onde surgiram ideias em muitos âmbitos, em particular no âmbito democrático. Ideias como o orçamento participativo, a democracia participativa, o referendo revogatório de mandatos — entre outras que, evidentemente, não foram concebidas na Europa e aqui são levadas a cabo.

E um papel muito ativo dos movimentos sociais…

Digamos que as esquerdas na América Latina são obra dos movimentos sociais, não obra dos partidos. Houve também aqui fracassos dos partidos, dos tradicionais e dos de centro. 

Movimentos ambientalistas, de direitos humanos…

E de pessoas que vivem em bairros desfavorecidos, agem em defesa dos agricultores, da água, do bem comum, da ecologia… Tudo isso surgiu na América Latina, como o Fórum Social Mundial. Nós participamos de sua criação, e você esteve conosco. O Fórum Social Mundial é uma associação dos movimentos internacionais, e isso marcou muito esta nova esquerda. Eu diria que, neste momento, a América Latina vive uma conjuntura particularmente favorável e é muito feliz que isso se dê se quando está celebrando o 200º aniversário do início de sua independência. Porque, seguramente, é uma segunda independência.

Creio que na história da América Latina nunca se viveu, coletivamente, um momento de prosperidade tão importante como o que se está vivendo agora. Na última década, saíram da pobreza, na região, uns 80 milhões de habitantes — destes, 40 milhões no Brasil — e isso não se havia produzido jamais na história latino-americana. Ela está vivendo o momento mais democrático de sua história, do ponto de vista político. Acabaram-se as ditaduras de todo tipo, as eleições são realizadas, existem partidos de oposição. Existem exceções: Honduras; mas é a exceção que confirma a regra.

Ao mesmo tempo, vivemos um momento em que a América Latina está em paz, globalmente. Exceto pelo conflito colombiano, não existem conflitos violentos, com armas. Há o problema do narcotráfico, o da delinquência, que alcança níveis estratosféricos.

Arrisco uma quarta reflexão sobre a America Latina hoje, que me parece muito importante e talvez seja o que a caracteriza mais profundamente. Houve três ciclos, do ponto de vista das personalidades que pilotaram sua história: os conquistadores — gostemos deles ou não –, os libertadores e hoje os integradores. Tudo de inovador que foi feito na América Latina — Unasul, Petrocaribe, ALBA, Mercosul, Celac — orienta-se na direção de uma integração, com líderes extremamente mobilizados em torno dessa ideia: Chávez, Correa, Morales, os cubanos Fidel e Raul, Cristina, Lula. E hoje incorporam-se o México, o Chile, até os países dirigidos por governos conservadores, porque há uma consciência de que este é o momento dos integradores e quem sair deste grupo, a história condenará. Assim como condenou aqueles que não estiveram com os libertadores, dois séculos atrás.

Como você vê as novas formas de colonialismo na América Latina? Porque aprofundaram-se os processos colonizadores, o neoliberalismo e o Consenso de Washington, que significaram a perda de nossos recursos estratégicos em quase todos os países latinoamericanos.

Hoje, na América Latina, devemos prestar atenção a várias questões que me parecem capitais. Na minha opinião, a principal é que o crescimento latino-americano — a chave de tudo o que estamos dizendo, da prosperidade, da saída da pobreza de milhões de pessoas — reside essencialmente no comércio com a China. Esta potência nascente está comprando maciçamente produtos alimentares da Argentina e do Brasil e minerais — produtos do setor primário, essencialmente — do Chile e do Peru. Se tomarmos apenas estes quatro países, todos já experimentaram um crescimento espetacular. A Argentina, você sabe melhor que eu, cresceu nos últimos dez anos mais que a Espanha nos últimos 21, com base na exportação de soja à China. Por que digo que há que ter cuidado e é preciso começar a criar um mercado interno, como estão fazendo os brasileiros? Porque hoje, as economias globalizadas dependem umas das outras, e a latino-americana agora depende da China como em outra época dependeu dos Estados Unidos.

Dois aspectos a considerar: a China não é um país cuja estabilidade esteja garantida para sempre — jamais. Muito menos que os EUA. No entanto, é um sistema no qual coincidem duas forças que são intrinsecamente, estruturalmente contraditórias: o capitalismo mais selvagem e o comunismo mais autoritário. Estas duas forças não podem conviver muito tempo juntas. Chegará um momento em que a tensão entre ambas produzirá uma ruptura e ninguém pode dizer quando: vinte, cinquenta anos? Mas também pode ser como os terremotos, dentro de uma ou duas semanas.

Onde termina a crise?

Não terminou. A dependência da China implica um perigo: não é estável para sempre. Em segundo lugar, o país funciona como fábrica do mundo, e importa porque vende. Mas a quem vende? Vende essencialmente aos dois grande polos de consumo do mundo, os Estados Unidos e a União Europeia. Se os dois entram em recessão e suas populações empobrecem, como neste momento, terão de reduzir fortemente o consumo. Nesse caso, a China já não vai produzir tanto, e por conseguinte não vai importar tanto. Em consequência, o Brasil já está percebendo como seu crescimento diminui, em comparação aos anos passados.

Guarde um número, Pino: a China precisa crescer mais de 8% ao ano, para absorver a mão de obra que entra no mercado de trabalho. Se crescer a um ritmo menor, cria-se um grande contingente de desocupados, e acelera-se a instabilidade que mencionei antes. Daí a necessidade de integração da América Latina. Creio que dirigentes como Chávez, como Dilma neste momento, já perceberam isso perfeitamente. Sobre isso, quero acrescentar algo relacionado a sua pergunta anterior, sobre as novas dependências.

Hoje, os países estão sendo monoprodutores: não é tão simples mas, se caricaturarmos um pouco, a Argentina tornou-se um país produtor de soja; o Brasil, também; o Chile é um produtor de minerais, como sempre foi de cobre; o Peru, igualmente. Quem explora estes minerais? As grandes corporações transnacionais. Não houve ainda nenhuma reflexão coletiva — talvez haja algo na Venezuela e em países como o Equador — sobre o fato de não podermos nos desenvolver enquanto deixarmos o motor do desenvolvimento nas mãos de grandes corporações privadas, que pensam e agem em favor de seus próprios interesses, não dos interesses de nossos países.

Mudando um pouco de tema, voltando aos movimentos sociais: como eles são hoje um ator protagonista destas mudanças? Como se constrói o poder político? Porque há certas resistências nas militâncias sociais que, por terem sito tantas vezes traídas pelos partidos políticos, investem suas energias no campo do social e têm certa aversão e desconfiança para se constituírem em força política. Mas, a partir de onde se constrói o poder político? Porque as mudanças no movimento democrático da América Latina inevitavelmente são institucionais e por via democrática.

Tem razão. Se examinarmos um pouco mais o panorama destes últimos meses, observamos que, como consequência do que explicamos sobre as mudanças deste novo sistema-mundo, particularmente as gerações jovens estão sentindo-se abandonadas. Percebem que estão ficando sem futuro. São gerações sem futuro, sentiram que o que chamamos de ascenção social não funciona e que vão viver pior que seus pais e avós, mesmo tendo mais estudo que eles. Que a ascenção social transformou-se em declínio — e daí surgem os Indignados. Os primeiros que se revoltaram, em 2011, foram os jovens árabes. Em seguida, ainda naquele ano, vieram os indignados espanhóis, israelenses, chilenos, colombianos, dominicanos, os norte-americanos.

Nós tivemos, na Argentina, o que se vayan todos [“fora todos”] em 2001-2001.

Que se vayan todos, este é o modelo. É o modelo nos Estados Unidos e em Londres. Seguiu de perto o dos Indignados espanhóis, um movimento extremamente interessante, mas com a ideia que você enfatiza: de tanto ver o comportamento tão criticável dos políticos de qualquer tendência, a falta de seriedade e de coerência, a capacidade de dizer o contrário do que prometeram na campanha, criou-se uma espécie de rejeição geral à política. Os Indignados não querem ter líderes, não querem ter programas, não querem meter-se em política, já que isso lhes dá náuseas.

O problema é que você não pode mudar as coisas sem fazer política, porque nossos sistemas estão feitos dessa maneira. Obviamente, ninguém hoje em dia, depois de ter conhecido o que passamos ao longo do século XX, pode fazer uma aventura de conquista do poder pela violência. Menos ainda em países que estão saindo desta experiência, como na América Latina, ou que a enterraram definitivamente, como na Europa. Então, aos amigos Indignados, digo-lhes que iremos para o lado da América Latina.

O continente nos revelou uma crise política, uma crise da dívida externa, provocou uma rejeição dos partidos tradicionais… mas os movimentos sociais souberam organizar-se, constituir uma massa crítica e levar ao poder programas que mudaram as coisas. Ocorreu na Venezuela, no Equador, na Bolívia, até no Brasil, na Argentina. Os movimentos são muito recentes, toda uma geração está se politizando. Diria que quando os desta geração começaram a protestar, protestaram de maneira poética, de maneira angelical. Eles e elas pensavam definitivamente que, com um pouco de boa vontade, podiam mudar as coisas. Não pensaram nos interesses estabelecidos, no ato de aferrar-se ao poder existente, no que representa o poder político diante do poder econômico. Na realidade, eles tampouco queriam que as coisas mudassem tanto, porque a maioria destes jovens reivindicavam voltar ao mundo que haviam conhecido dois ou três anos antes. Não estavam lutando por um paraíso na terra, no futuro. Simplesmente queriam recuperar o que tinham acabado de perder.

Mas a experiência está lhes ensinando a politizar-se e o caminho percorrido é muito interessante. Quando você fala com eles agora, têm mais consciência das resistências, da necessidade de se organizar. Mais consciência da necessidade de encontrar uma expressão política. Por isso, e como penso que a crise na Europa vai continuar sendo socialmente muito dura, não me desespero. Ao contrário: vejo que estas novas gerações saberão manifestar-se politicamente para mudar as coisas.

Entre os debates que temos pendentes no Sul do planeta, estão as relações entre o público e o privado. Empresas públicas e empresas privadas, televisões públicas e privadas; desde as grandes empresas e serviços aos meios de comunicação. Falemos algo sobre este tema.

Na minha opinião, é a batalha principal. Neste momento, na América Latina, a luta principal, no âmbito midiático, passa por aí. O que se pode dizer, de fora? Não sou um ator, sou um observador distanciado. Mas com a distância, é o que vejo. Aqui havia um sistema monopolizado de latifúndios midiáticos, controlados pelos grandes proprietários privados. Naturalmente, alguns dos novos governos progressistas deram-se conta de que estes grandes monopólios privados, estes grandes latifundiários, assumiram a função de oposição política contra os programas dos governos progressistas e lançaram uma guerra de morte. Deram um golpe de Estado contra Chávez. Estão encurralando Correa. Na Argentina, travam uma grande batalha deste tipo. Lula a travou com o grupo Globo. Também a enfrentou Lugo, no Paraguai; também Morales, na Bolívia.

O que estamos vendo é que se está criando um certo equilíbrio, uma operação de reequilíbrio entre o setor público e o privado. Acrescento o seguinte: neste momento da batalha midiática, o setor público das comunicações experimenta o que poderíamos chamar de “doença infantil”, que é a fazer-se porta-voz do governo. É o que reiterei muito em minhas conferências na Venezuela, no Equador, em outras partes…

Confundir o público com o partido governante…

Claro. Tenho frisado que a ninguém interessa que o setor público da comunicação seja a expressão do governo, ou de um partido do governo, porque finalmente a democracia cria alternativas e então, quando chegar a oposição, por exemplo de um partido conservador, também disporá dos meios do Estado. O interesse do país é que os meios públicos sejam administrados por uma legislação específica, por conselhos de audiovisual plurais. Assim como o poder judiciário, isolado de pressões políticas e dirigido por profissionais especializados, que façam o que lhes pareça profissionalmente correto.

O terrível é quando, ao invés de democratizar o sistema audiovisual, os governos o encarceram nas redes do partido governante, com as mesmas práticas de censura ou propagandísticas de sempre.

Claro, com certeza.

Dada sua influência na cultura, na informação e no debate público, o sistema audiovisual deveria ser controlado por um organismo que represente toda a sociedade. O caminho é a luta contra a monopolização, não a criação de um monopólio estatal a serviço do partido governante.

Estamos longe, mas estamos no caminho…

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