Otimismo em tempos de crise

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Em “Le Havre”, o otimismo faz milagres – literalmente. Mas qual espaço para os bons sentimentos em época de crise?

Por Bruno Carmelo, editor do Discurso-Imagem.

Chega aos cinemas um dos filmes mais premiados em festivais durante 2011, o francês Le Havre, realizado no entanto por um finlandês, Aki Kaurismäki. Por um lado, Le Havre apresenta o mesmo estranhamento de todos os filmes anteriores do diretor: luzes artificiais, atores voluntariamente inexpressivos, diálogos entonados como discursos políticos, ações mínimas, música onipresente. Para os fãs de um cinema de estranhamento, esta obra apresenta o reconforto de se encontrar exatamente as escolhas típicas do diretor – e a possível frustração de não se encontrar nada além disso.

Por outro lado, este filme é um conto, algo curioso em pleno contexto de crise econômica, pessimismo social (os franceses acabaram de ser classificados como os mais pessimistas do mundo em relação ao futuro do país) e durante a época de Natal. Le Havre talvez não possa ser considerado como um conto de Natal propriamente dito, pela ausência deste período do ano na história, mas está presente o tradicional otimismo exagerado e ingênuo.

Nesta história simples, um garoto negro tenta passar ilegalmente da cidade do Havre, na França, a Londres. A polícia descobre seus planos a passa a persegui-lo – pelo menos em princípio. A diferença é que, contra a dicotomia maldade-bondade, neste filme todos são solidários: Marcel Marx, pobre engraxador de sapatos, aceita acolher o garoto, os vizinhos não hesitam em ajudar, mesmo o policial de aparência soturna (capa preta, chapéu preto) colabora a esconder o garoto. E a esposa de Marcel, doente, se recupera.

“Com o passar dos anos, eu fico cada vez mais pessimista, e meus filmes mais otimistas”, havia explicado aos jornais franceses o diretor finlandês. De fato, Le Havre é um filme sem obstáculos, formado por um ideal de comunidade solidária e humanista digno dos sonhos socialistas mais doces. Não há política nem sociedade neste filme que usa, mesmo assim, a voz off do Ministro da Imigração francês da época, Eric Besson, lançando discursos xenofóbicos contra a “delinquência estrangeira”.

Ora, esta voz está distante, parece vir de um mundo sem conexão com a pequena cidade-título onde se passa a ação. Se existe de fato a sociedade islamofóbica e paranoica da França atual, Le Havre (“o porto”, em português) parece não fazer parte dela. O filme cria precisamente um porto de solidariedade, de caridade e fraternidade, isolado num país fantasma. Estranha maneira de se retratar a sociedade: não pelo que o diretor acredita que ela é, mas pelo que ele julga que ela poderia ser.

No final, críticos e espectadores acabaram defendendo ou atacando a obra pelas mesmas razões: seu otimismo liso, ideal, cor de rosa. Uns disseram que é exatamente disso que o povo precisa em época de crise: que o cinema de autor faça “bons filmes com bons sentimentos”, ao invés de deixar a tarefa aos estúdios americanos conservadores. Outros defenderam que tal ingenuidade seria avessa ao “cinema de autor”, cuja tarefa seria a de suscitar a reflexão, e não se limitar a trazer pouco de reconforto nos períodos difíceis. Resta ao espectador decidir se ele busca, no cinema atual, uma voz que acalenta ou uma voz que interpela.

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Le Havre (2011)

Filme franco-alemão-finlandês dirigido por Aki Kaurismäki.

Com André Wilms, Kati Outinen, Blondin Miguel, Jean-Pierre Darroussin, Evelyne Didi, Pierre Étaix, Roberto Piazza.

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