Chéri à Paris: Genuíno Franco, crítico rangonômico

“Olhei bem pra aquilo e tudo o que conseguia ver era uma torrada seca com uma fatia de rabanete tão fina que dava pra olhar através dela, aquilo não enchia nem o buraco da cárie”

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(Chéri à Paris, por Daniel Cariello)

Esse texto faz parte da série “Autour de Paris”, de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui

Genuíno Franco foi durante muito tempo o editor do A Verdade, uma respeitada e temida publicação sobre as bandas independentes brasileiras, na qual descia o sarrafo em todo mundo. Após sofrer ameaças de metaleiros, headbangers, indies, alternativos, punks e hippies em bad trip, Genuíno foi obrigado a deixar o Brasil e se refugiar na França, onde encontrou o ambiente ideal para fazer o que mais gosta: reclamar.

Como eu sou o único amigo que lhe restou, e principalmente porque ele tá me devendo uma grana e prometeu pagar se eu o ajudasse, decidi abrir espaço no Chéri à Paris para que ele volte a exercer sua verve crítica. Dessa vez no ramo gastronômico (ou rangonômico, como ele prefere).

Com vocês, Genuíno Franco.

Pinguim, curingas e outras roubadas

Depois de abandonar por ora a carreira de crítico de bandas ruins (o que significa todas as bandas, menos a minha), decidi aproveitar que tô aqui na França de bobeira mesmo e embarquei numas de crítico de rango, porque dizer que é crítico gastronômico é coisa de emo ou de fã do Los Hermanos.

Pra minha primeira empreitada, topei encarar o menu dégustation do Les Magnolias, restaurante comandado pelo chef Jean Chauvel. De cara, já não gostei do nome do distinto. Chauvel? Chauvel onde? Molhou muito? Ah, tenha paciência. Deu saudades do Jão, dono do Pratão do Jão da rodova de Brasília.

Chegando ao recinto me senti num filme do Batman. Na entrada, um sujeito vestindo de pinguim abria e fechava a porta para os otários clientes. No salão, outros tantos com eternos sorrisos de curinga acenavam com a cabeça, mesmo que não houvesse ninguém para quem acenar.

Quando o assunto é rango, existe uma regra básica pra mim: não abro mão de comer no balcão. E enquanto me embrenhava no lugar para descobrir onde ele ficava, dois curingas vinham atrás de mim. O primeiro dizia “monsieur, monsieur, c’est par ici” e o segundo tentava tirar meu casaco. Dei logo uma tapa na mão que é pra acabar com aquela intimidade ali mesmo e perguntei pelo balcão da espelunca. O cara não entendeu nada e ficou me apontando uma mesa, dizendo que “a havia preparado para mim”. Pra mim, sei. Sem escolha, instalei-me.

– Desce a degustação.

– Ah, vai querer ir na surpresa, né?

Aí me emputeci e bati logo na mesa, assustando o pinguim da entrada, que largou a porta na fuça de mais um otário cliente que chegava, vestido como se fosse pianista do Municipal. Que papo é esse de surpresa? Eu vim aqui rangar, se quisesse surpresa fazia amigo oculto com o povo da firma. Um sujeito que parecia ser o curinga boss veio me explicar que o menu dégustation era assim mesmo, dependia do que o chef tinha preparado, dos produtos da estação, das condições climáticas e de outras frescuras das quais nunca tinha ouvido falar no Pratão do Jão.

Um curinga tamanho petit chegou com uma espécie de tigela enorme e dois trequinhos no meio e a colocou no centro da mesa, explicando que era um “toast de radis melba especialmente pensado pelo chef para abrir o apetite”. Olhei bem pra aquilo e tudo o que conseguia ver era uma torrada seca com uma fatia de rabanete tão fina que dava pra olhar através dela. Engoli de uma vez e fiquei olhando pro curinguinha, esperando ele mandar outra rodada porque aquilo não enchia nem o buraco da cárie. Só que antes que ele pudesse esboçar qualquer reação surgiu um outro curinga, dessa vez em normal size, carregando um prato retangular no qual repousava uma colher de prata toda torta com uns fiapos de peixe. Aquela colher devia ter sido tocada pelo Uri Geller, nunca vi coisa tão deformada. Enquanto encarava o objeto, um terceiro curinga chegou sem que eu visse e colocou na mesa um copinho com um líquido meio verde, meio laranja.

– Deixa a sardinha aí, mas pode levar de volta a vitamina de abacate. A da minha mãe é imbatível, se quiser eu passo a receita.

Sem perder a pose e o sorriso eterno, os três curingas me explicaram em uníssono que aquele conjunto se tratava de uma “colher com haddock e aipo rémoulade, acompanhado de um velouté de cenouras feito como tajine”. Eu juro que a minha paciência já estava por um fio. Que horas eles iam parar de me sacanear e trazer o rango de verdade?

Mas já que precisava cumprir minha função de crítico, decidi que ia encarar a parada até o fim. O que não faço pelo amor à profissão? Então fiquei ali sentado enquanto os curingas se sucediam, trazendo porções tão pequenas que pareciam amostras grátis do que eles insistiam em chamar “especialidades do chef”, por mim apelidadas “escabrosidades do blefe”. Como um sanduba de presunto e manteiga liquefeito, metido em um recipiente que parecia a lâmpada do Aladim. “É para beber, monsieur.”. Ou um dente de alho preto como o anu, “marinado um mês na água do mar”. Um papo muito do estranho, aquele.

E quando eu achava que a coisa não podia piorar, veio a gota d’água. Anunciando que era a última das sobremesas, o curinga mirim depositou sobre a mesa um palito com algodão doce. Pirei de vez. Fiquei procurando a câmera porque aquilo só podia ser pegadinha. “É mentolado, monsieur”. Mentolado é o raio que o parta! Pedi a conta porque pra mim já tinha dado. Quando vi o valor impresso no papel, chamei o curinga boss e disse que apreciava a proposta, mas não estava interessado em comprar o restaurante. Com a imutável expressão facial, ele me explicou que aquele era o valor do “menu dégustation” do chef Jean Chauvel. Eu falei que pra mim ainda não tava chauvendo dinheiro. Ele não entendeu nada. Eu paguei com dor no coração. O pinguim me abriu a porta. Eu cheguei em casa e fiz um pão com ovo maneiro, em homenagem ao Pratão do Jão.

Daniel Cariello, editor da revista Brazuca, é colaborador regular daBiblioteca Diplô /Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a cidade com olhar brasileiro. Os textos publicados entre março de 2008 e março de 2009 podem ser acessados aqui.

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