Bixiga, espaço ameaçado

Bixiga — Foto: Caio Pimenta/SPTuris

Em SP, em plena gestão Haddad, surpresa ruim: proposta da prefeitura pode desfigurar bairro-síntese da cultura da cidade. Há alternativas, porém

Por Cafira Zoé e Rodrigo Andreolli

Também conhecido como Bela Vista, o tradicional bairro do Bixiga, na região central de São Paulo, é um ponto importante na história da cidade. Sua diversidade artística e cultural foi talhada ao longo dos anos, traçando uma rica e múltipla confluência de forças nesse território. As intensas manifestações culturais que deram cara ao Bixiga, e que são marca de sua vocação estética, política e afetiva, se amalgamaram ali durante séculos, fruto de potentes misturas: a presença dos negros quilombolas, a chegada dos imigrantes italianos e africanos, os migrantes nordestinos, os artistas dos teatros, do samba paulistano, os artesãos e os pequenos comerciantes… habitantes que ali vivem e tecem sua história, cotidianamente.

No entanto, desde os anos 60, a região vem sofrendo os desmandos de perversas políticas públicas, responsáveis pelo corte radical em seu tecido urbano e social. Essa violência estrutural ficou mais evidente com a construção da ligação leste­-oeste, durante a administração do então prefeito, Paulo Maluf. A obra visava abrir uma via expressa de carros entre a zona leste da cidade, o centro e a zona oeste, através do Minhocão. Quarteirões inteiros foram desapropriados e/ou derrubados, criando uma cisão no bairro do Bixiga ­- espécie de cicatriz. Essa ferida aberta no território fortaleceu em grande parte a desconexão de vias para pedestres e a desertificação destes arredores.

Fazendo jus a essa tradicional forma de fazer política urbana, a Subprefeitura da Sé publicou no dia 29 de dezembro de 2015 uma licitação de ocupação onerosa voltada para os baixios do viaduto Julio de Mesquita Filho -­ mais de 11 mil m² a serem (re)explorados. O edital determina ainda que as empresas interessadas na exploração comercial desta área enviem seus projetos de ocupação para o espaço até a data limite de 31 de março de 2016 (a princípio, entre a abertura do edital e de seu fechamento, apenas 3 meses para a formulação de um projeto que, pelas implicações urbanas, socioeconômicas e culturais que envolve, mostra­-se tão delicado quanto complexo).

Baixios do Viaduto Julio de Mesquita Filho — Foto: Max-Zolkwer

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Em tom de sugestão, o edital desenha alguns caminhos possíveis por onde as propostas podem (ou não) seguir. A criação de áreas verdes, instalações sustentáveis, espaços para atividades socioculturais, são alguns dos parâmetros sugeridos. No entanto, não são priorizadas questões que deveriam ser tomadas como obrigatórias ­ a necessidade de conhecimento da história do bairro e das atividades em curso, tanto no local que sofrerá a ocupação quanto em seu entorno, por exemplo. E o mais curioso: realizar uma visita técnica não é condição necessária para habilitação da proposta. Especuladores interessados, depois de enviado o projeto, poderão, se assim desejarem, pedir por uma visita no local. Conhecer pra quê, afinal?!

Uma leitura atenta do edital deixa claro que há, de fato, apenas um grande parâmetro orientador para a seleção da proposta vencedora: o valor de investimento ($$$) do projeto, equiparando qualidade de projeto à grana investida. Ou seja, ganhará aquele que apresentar maior orçamento, e não necessariamente o projeto que tenha maior coerência com as demandas e estruturas próprias do bairro.

O texto da licitação propõe ainda uma perigosa mistura entre uma ocupação centralizada e um longo tempo de exploração. Estão entre os aptos à concorrência, empresas de grande porte ou um consórcio de até 5 empresas, com uma orçamento inicial de 12 milhões para 10 anos de execução do projeto, renováveis por outros 10 anos. Isso fará com que a empresa ganhadora, ou o consórcio de empresas, tenha autonomia de decisões sobre este espaço durante todo este período, explorando comercialmente o local e minando o caráter mais importante a ser elaborado para essa área: o desenvolvimento de espaços públicos que potencializem as qualidades já existentes no Bixiga, não perdendo de vista a riqueza de sua diversidade histórica e a confluência das muitas pluralidades que ali habitam.

Que o edital tenha um grande potencial de transformação da região é inegável. O fundamental aqui é se perguntar, para quem? Como? E que a preço? Literalmente. Não são criados parâmetros que de fato regulamentem qual o tipo de projeto que ocupará este espaço, o que abre para alguns agravantes quando o assunto é “revitalização” urbana ­- possibilidade gentrificação urbana, expulsando os atuais habitantes da região em nome de uma “requalificação da área”, e abrindo caminho para uma ferrenha especulação imobiliária e para os já conhecidos processos de sufocamento urbano e verticalização desenfreada das cidades.

A execução deste edital, sem os devidos estudos e cuidados de proteção, sem uma análise profunda da realidade local, pode ser tão ou mais desastrosa que a construção da ligação leste­ oeste nos anos 70 ­ determinará o tipo de fluxo e a qualidade das atividades que serão desenvolvidas no bairro pelos próximos anos. Antes de propor a maquiagem das “requalificações”, seria interessante voltar algumas casas, e pensar sobre uma qualificação efetiva. Entender com mais profundidade o local, seus potenciais não só comerciais, mas culturais, educativos e sociais pode ser uma maneira de começar.

Um projeto em parceria público­-privada, que tivesse uma visão ampla e consistente desta potência do bairro do Bixiga, poderia gerar, de fato, uma transformação de base no coração da cidade; mas para isso seria necessário desenvolver novas lógicas de execução. Propor uma audiência pública com moradores, comerciantes e grupos que atuam no dia-­a­-dia do Bixiga, seria um primeiro passo. Além disto, é crucial que se leve em consideração também que o bairro, com suas ruas, restaurantes, casarios, tem áreas tombadas pelos órgãos de proteção do patrimônio. Ou seja, qualquer interferência nesta área deve ser pensada em uma escala urbanística, com uma visão totalizante, e não apenas em termos de uma solução imediatista atada às lógicas de exploração capital.

Chegamos à outra questão que está fundamentalmente ligada a esta: a construção das torres nas terras demarcadas no entorno do Teat(r)o Oficina, ­ adjacentes aos baixios do Viaduto Júlio de Mesquita Filho. Estas terras foram compradas ao longo de trinta anos por empresas do grupo Silvio Santos (SS). Durante os anos 90 e 2000 sofreram contínuas demolições ­- incluindo uma sinagoga e casas que faziam parte da paisagem histórica do bairro. Operavam ali também escritórios da parte financeira do grupo Silvio Santos e o estacionamento das kombis do Baú da Felicidade. Hoje, este terreno é uma grande área aberta que respira, que respira!, no centro de São Paulo. Uma terra arqueológica, pulsando como verdadeiro signo da história da cidade.

Terreno entorno do Teat(r)o Oficina — Foto: Markus Lanz

Mas quais seriam, então, as intenções do Grupo SS e da construtora Sisan neste local? Existia interesse em construir um Shopping Center ali. No entanto, uma atividade deste caráter, numa área como o Bixiga, causaria um impacto severo, difícil de contornar: uma enorme quantidade de carros nas ruas estreitas; aliada a uma mudança brusca no custo de vida local e ao sufocamento dos pequenos comerciantes e artesãos que são parte da composição do bairro. Além disso, uma mudança na paisagem seria inevitável ­ a construção obstruiria um dos únicos espaços ainda não verticalizados no centro de São Paulo, causando assim o sombreamento de grande parte do bairro, dificultando a passagem de ar (ainda precisamos respirar) e desrespeitando a preservação de uma área histórica protegida. O projeto do Shopping se transformou em um projeto de construção de torres residências de quase 30 andares!, igualmente nocivo do ponto de vista urbanístico e cultural e com a mesma e obtusa lógica de exploração.

O Teat(r)o Oficina, a Casa de Dona Yayá, o TBC, a Vila Itororó, são alguns exemplos de espaços do bairro que são protegidos pelo patrimônio histórico. Algumas casas na rua Japurá também. Por isso, a descaracterização deste bairro significa a destruição de uma cultura. Significa a violenta desvalorização de modos de vida, e a consequente imposição de um único pensamento sobre cidade, e sobre como viver nela.

O Teat(r)o Oficina tem papel central na luta pela preservação desta área, constituindo­-se como uma das forças que desejam sua demarcação cultural e a transformação efetiva deste terreno do entorno em um terreno público, comum ­- e que aqui vale lembrar a definição de comum do filósofo político Antonio Negri. “O comum é sempre construído por um reconhecimento do outro, por uma relação com o outro que se desenvolve nessa realidade. Às vezes chamamos essa realidade de multidão porque quando se fala de multidão, de fato, se fala de toda uma série de elementos que objetivamente estão ali e que constituem o comum” .

Luta-­se pela poética do vazio que deixa livre o janelão-­de-­vidro-­do-­Oficina para ver a cidade e ser visto por ela, preservando como um organismo vivo um dos últimos respiros urbanos da cidade de São Paulo, que mantém acessa toda a efervescência artística e cultural experimentada ali.

Teat(r)o Oficina, janelão — Foto: Jennifer Glass

Deseja-se uma proposta que possa abrigar o projeto urbanístico sonhado por Lina Bo Bardi, desenvolvido posteriormente por muitas mãos, e que chega hoje no projeto desenhado durante a X Bienal de Arquitetura em 2013, intitulado carinhosamente de ANHANGABAÚ DA FELIZCIDADE. Esta proposta prevê que a área no entorno do Teat(r)o Oficina permaneça uma área pública aberta, e se conecte à Praça Roosevelt através dos baixios dos viadutos, preservando vazios, espaços e passagens, formando um corredor­cultural capaz de abrigar teatros, restaurantes, uma universidade de cultura antropofágica, o acervo do teatro brasileiro, um centro de pesquisa do bárbaro tecnizado, um espaço de estudo do corpo, enfim, um projeto expandido, onde cultura e arte sejam o ponto nevrálgico para uma (trans)formação, e que venha de dentro da própria cultura florescente no Bexiga.

O Teat(r)o Oficina, cultivado na Rua Jaceguay 520 desde os anos 60, viveu as transformações da região e mudou junto ao longo desse tempo, em diálogo com o entorno, desejando abrir­ se cada vez mais para a cidade. Seu projeto atual, assinado por Lina Bo Bardi e Edson Elito, foi tombado em 2010 pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Porém, este mesmo órgão que há alguns anos atrás reconheceu a importância deste espaço e da preservação do seu entorno para o bairro, para a cidade, neste inicio de 2016, por falta de instrumentos jurídicos, não encontra meios de impedir a aprovação do projeto de construção das 3 torres, o Residencial Bela Vista, do Grupo Silvio Santos ­ SISAN, em caráter de sufocamento explícito das vocações artístico-culturais e arquitetônicas ali presentes.

Perspectiva de como deve ficar o Teatro Oficina junto às novas torres

Onde está a coerência dos órgãos de proteção do patrimônio? Onde está o pensamento das gestões do poder público? Por onde anda a capacidade de reflexão jurídica e de transformação de legislações arcaicas em novas e sensíveis jurisprudências? Porque não criar e compor este edital de ocupação dos baixios do viaduto com seus habitantes, agentes e grupos que vivem no bairro, que conhecem de fato o que acontece ali? Porque lançar um edital desta dimensão sem uma consulta pública prévia, sem usar do conhecimento adquirido pelos atores locais? A quem interessa a pressa?

Entender a potência da ocupação destes locais, a importância de estar ali presente diariamente, de experimentar o território sobre o qual se decide o futuro: Isto é qualificar, isto é pensar a cidade, isto é enaltecer as qualidades históricas e a vocação de uma comunidade. O poder público, ao contrário, para solucionar de maneira rápida as questões da área, cria modelos de pasteurização dos espaços públicos através de uma licitação para ocupação onerosa, centralizada e incoerente nos baixios do viaduto Julio de Mesquita Filho. Ao mesmo tempo, os órgãos de proteção veem­-se impossibilitados de impedir a construção das torres pelo Grupo Silvio Santos. Montemos esse quebra-cabeça, não é difícil imaginar qual o tipo de bairro que o Bixiga pode se tornar se ações como essas não forem questionadas, repensadas e redefinidas.

É hora de abrir a escuta, o olhar e a sensibilidade dos pensamentos e corpos para compreender que esta questão não é problema de um bairro, nem assunto de um grupo, pelo contrário, diz respeito ao tipo de cidade que queremos. A maneira como políticas públicas, em parcerias privadas, como essa, são conduzidas, reflete uma lógica que tende à destruição de tudo que é diverso, buscando a homogeneização de pessoas e coisas, desejando a esterilização social, e com ela o controle das subjetividades, das ações, do direito de ir e vir, dos corpos, dos pensamentos… Sintomas de um modo de existir centrado na opressão do capital financeiro como forma de controle e solução.

Temos aqui a grande chance de criar um programa de desenvolvimento do espaço público que se baseie em uma outra lógica, renovada de sentidos e interesses, que seja capaz de nutrir e valorizar a arte, a cultura, a educação e o meio ambiente como vértebras fundamentais de uma mudança de paradigmas, de um modo de olhar a vida, e de pensar e viver as cidades.

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Um comentario para "Bixiga, espaço ameaçado"

  1. Marcelo disse:

    Magnífico o texto e reflexão! Parabéns aos autores por essa contribuição.

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