Manuel Castells analisa a insurreição na França

“O multiculturalismo não é uma ideologia, mas uma realidade”, aponta o pensador. Protesto no país expõe fratura em toda a Europa: jovens negros, imigrantes ou não, denunciam a discriminação – e reagem à violência racista

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Por Manuel Castells, no La Vanguardia, traduzido pelo IHU

Tanto os meios de comunicação quanto a polícia, classificam as revoltas de jovens que incendiaram a França com este desventurado termo do título. Dos subúrbios segregados, onde vivem as minorias étnicas marginalizadas, a violência se espalhou para o centro das cidades.

Tudo começou em Nanterre, adjacente ao centro financeiro de La Défense, em Paris, mas os incidentes mais graves ocorreram em Marselha. Nesta cidade e em Nîmes, arsenais foram assaltados.

Alguns policiais foram alvos de disparos. Incendiaram carros, escolas, prédios públicos, e lojas foram saqueados. Foram atacadas 58 delegacias e houve confrontos com centenas de feridos e milhares de detidos. A casa do prefeito de L’Haÿ-les-Roses foi incendiada com grave risco para a sua família. Apesar de 45.000 policiais recrutados, apoiados por tanques.

De onde surge essa fúria? A faísca foi, como sempre, a violência da polícia contra jovens magrebinos e negros. O assassinato de Nahel, registrado em um vídeo, transbordou o copo da raiva. A maioria dos policiais franceses são racistas, como alertou um relatório recente da ONU, assim como boa parte da população (35% se declaram abertamente racistas).

A detenção e prisão do policial envolvido polarizou os cidadãos e os políticos, com Le Pen se colocando ao lado das forças policiais, enquanto Mélenchon denunciava sua brutalidade.

Os sindicatos de policiais falam de guerra. A repressão policial e os apelos de familiares e rappers contiveram a violência por enquanto. Culpa-se a imigração. Mas, na realidade, não são imigrantes, a maioria são jovens nascidos na França, sendo 10% deles da terceira geração.

São mais de 20% da população e sua proporção continua crescendo. São franceses, mas não se sentem tratados assim, nem em casa, nem na escola, nem no mercado de trabalho, nem no respeito à sua cultura.

Os jovens, que conhecem seus direitos, não toleram mais a discriminação e reagem cada vez mais contra a violência racista. A fratura étnica da França é irreparável, como acabará sendo em uma Europa que não assume que somos irreversivelmente uma sociedade multicultural e multiétnica. Na Espanha, já há 17% da população nascida no exterior, concentrada em Madri e na Catalunha.

A rejeição à imigração é, na realidade, uma negação do “outro”, mesmo que não seja mais imigrante. Da xenofobia se passa ao racismo. É tarde demais para expulsar a imigração, porque são cada vez mais cidadãos de pleno direito e a diferença de nascimento com os nativos aumenta incessantemente. As consequências políticas já são visíveis na ascensão do Vox. Mas, ainda mais grave é a incapacidade de aceitar a convivência com outras culturas.

O multiculturalismo não é uma ideologia, mas uma realidade. É o que muitos franceses não aceitam e tentam manter as minorias como cidadãos de segunda categoria, negando a grande tradição republicana que nasceu na França. A violência surge da incapacidade de conviver. E o ódio envenena toda a nossa existência.

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