bell hooks: Amor como prática da liberdade

Ele é uma ética essencial na luta política, dizia pensadora, que morreu em 2021. Para ela, a vida em comunidade exige resgatar esse sentimento como cura coletiva à desesperança e impotência – e forma de resistência à brutalidade neoliberal

Foto: Holler Home/The Orchard/Kobal/Shutterstock
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Este é um dos ensaios de bell hooks reunidos em Cultura fora da lei, livro publicado pela Editora Elefante, parceira editorial de Outras Palavras

Nesta sociedade, não há um discurso potente sobre o amor emergindo nem de radicais politicamente progressistas nem da esquerda. A ausência de um foco contínuo no amor dentro dos círculos progressistas é resultado de uma falha coletiva em reconhecer as necessidades do espírito e de uma ênfase excessiva em preocupações materiais. Sem amor, nossos esforços para libertar a nós mesmos e a nossa comunidade mundial da opressão e da exploração estão condenados. Enquanto nos recusarmos a abordar plenamente o lugar do amor em lutas pela libertação, não seremos capazes de criar uma cultura de conversão na qual uma multidão de pessoas se afaste de uma ética de dominação.

Sem uma ética do amor para moldar a direção da nossa visão política e das nossas aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidos, de uma forma ou de outra, por uma lealdade contínua a sistemas de dominação — imperialismo, sexismo, racismo, classismo. Fico intrigada com mulheres e homens que passam a vida trabalhando para resistir e se opor a uma forma de dominação, mas apoiam sistematicamente outra. Já fiquei intrigada com líderes negros visionários influentes, que conseguem falar e agir com empolgação, resistindo à dominação racial, e, ao mesmo tempo, aceitar e abraçar a dominação sexista das mulheres; e com mulheres brancas feministas que trabalham diariamente para erradicar o sexismo, mas têm grandes pontos cegos quando se trata de reconhecer o racismo e a dominação supremacista branca do planeta e resistir a eles. Ao analisar esses pontos cegos de maneira crítica, concluo que muitos de nós estão motivados a agir contra a dominação apenas quando sentimos nosso próprio interesse ser diretamente ameaçado. Muitas vezes, então, o anseio não é pela transformação coletiva da sociedade, pelo fim da política de dominações, mas simplesmente pelo fim do que sentimos estar nos machucando. É por isso que precisamos desesperadamente de uma ética do amor para intervir em nosso desejo egocêntrico por mudança. Essencialmente, se estamos comprometidos apenas com uma melhoria nessa política de dominação que sentimos resultar diretamente em nossa exploração ou opressão individual, não apenas permanecemos ligados ao status quo como também agimos em cumplicidade com ele, nutrindo e mantendo esses mesmos sistemas de dominação. Até que todo mundo consiga aceitar a natureza interligada, interdependente dos sistemas de dominação, e reconhecer as formas específicas da manutenção de cada um deles, continuaremos a agir de maneira a comprometer nossa busca individual pela liberdade e a luta coletiva pela libertação.

A capacidade de reconhecer pontos cegos somente emerge conforme expandimos nossa preocupação com políticas de dominação e nossa capacidade de nos importar com a opressão e a exploração dos outros. Uma ética do amor torna essa expansão possível. O movimento dos direitos civis transformou a sociedade nos Estados Unidos porque estava fundamentalmente enraizado em uma ética do amor. Nenhum líder enfatizou essa ética mais do que Martin Luther King. Ele teve a visão profética de reconhecer que uma revolução construída em qualquer outra base fracassaria. Repetidas vezes, King declarou que tinha “decidido amar” porque acreditava profundamente que, se estivermos “buscando o bem supremo”, nós “o encontraremos por meio do amor”, porque essa é “a chave que abre a porta para o significado da realidade definitiva”. O objetivo de estar em contato com uma realidade transcendente é lutarmos por justiça sempre conscientes de que somos mais do que nossa raça, classe ou sexo. Quando olho para trás, para o movimento dos direitos civis, de muitas maneiras limitado por ser um esforço reformista, vejo que ele tinha o poder de mover uma multidão de pessoas para agir em benefício da justiça racial porque estava profundamente enraizado em uma ética do amor.

O movimento black power dos anos 1960 se afastou dessa ética do amor. A ênfase naquele momento estava mais no poder. Não é surpreendente que o sexismo, que sempre comprometera a luta pela libertação negra, tenha se intensificado; que o tratamento misógino das mulheres tenha se tornado central à medida que se tornou norma entre líderes políticos negros — quase todos homens —, igualando a liberdade à masculinidade patriarcal. De fato, a nova militância do poder negro masculinista equiparava o amor à fraqueza, anunciando que a expressão quinta-essencial de liberdade seria a disposição para coagir, gerar violência, aterrorizar, utilizar de fato as armas de dominação. Essa foi a personificação mais crua do ousado credo de Malcolm X: “por qualquer meio necessário”.

No lado positivo, o movimento black power redirecionou o foco da luta pela libertação negra, de reforma para revolução.

Esse foi um importante desenvolvimento político, trazendo consigo uma perspectiva global anti-imperialista mais forte. No entanto, os vieses sexistas da liderança levaram à supressão da ética do amor. Assim, houve progresso, ainda que algo valioso tenha sido perdido. Enquanto King se concentrara em amar nossos inimigos, Malcolm chamava nossa atenção para nós mesmos, reconhecendo que cuidar da negritude era nossa responsabilidade central. Embora King tenha falado sobre a importância do amor-próprio negro, ele falou mais sobre amar nossos inimigos. Por fim, nem ele nem Malcolm viveram o suficiente para integrar totalmente a ética do amor a uma visão de descolonização política que fornecesse um modelo para a erradicação do auto-ódio negro.

Pessoas negras que entraram no âmbito da vida racialmente integrada nos Estados Unidos, devido ao sucesso dos direitos civis e do movimento black power, de repente descobriram que estavam lidando com uma intensificação do racismo internalizado. A morte desses importantes líderes (assim como dos líderes brancos liberais que foram grandes aliados na luta pela igualdade racial) desencadeou sentimentos fortes de desesperança, impotência e desespero. Machucadas naquele espaço onde conheceríamos o amor, pessoas negras vivenciaram coletivamente dor e angústia intensas em relação ao nosso futuro. A ausência de espaços públicos onde essa dor pudesse ser articulada, expressa, compartilhada significou que ela ficava contida — apodrecendo, suprimindo a possibilidade de que essa tristeza coletiva fosse resolvida na comunidade, mesmo que modos de superá-la e continuar a luta de resistência fossem antevistos. Sentindo como se “o mundo tivesse realmente chegado ao fim”, no sentido de que havia morrido a esperança de que a justiça racial se tornaria norma, um desespero ameaçador tomou conta da vida negra. Nunca saberemos até que ponto o foco masculinista negro na rigorosidade e na tenacidade serviu como barreira para impedir o contínuo reconhecimento público da tristeza e da dor enormes na vida negra. Em World as Lover, World as Self [O mundo como amante, o mundo como eu], Joanna Macy enfatiza, no capítulo “The Gateway of Despair” [O portal do desespero], que

paga-se um preço alto pela recusa em sentir. Não só há um empobrecimento de nossa vida emocional e sensorial […] como há também esse entorpecimento psíquico que impossibilita nossa capacidade de processar a informação e de reagir a ela. A energia gasta em reprimir o desespero é desviada de usos mais criativos, esgotando a resiliência e a imaginação necessárias para novas visões e estratégias.

Para as pessoas negras seguirmos em frente em nossa luta pela libertação, devemos enfrentar o legado dessa tristeza não resolvida, pois ele tem sido terreno fértil para um enorme desespero niilista. Devemos retornar coletivamente a uma visão política radical de mudança social enraizada em uma ética do amor e buscar, mais uma vez, converter uma multidão de pessoas, negras e não negras.

Uma cultura de dominação é antiamor. Requer violência para se sustentar. Escolher o amor é ir contra os valores predominantes da cultura. Muitas pessoas se sentem incapazes de amar a si mesmas ou aos outros porque não sabem o que é o amor. Músicas contemporâneas como “What’s Love Got To Do With It” [O que o amor tem a ver com isso], de Tina Turner, defendem um sistema de trocas em torno do desejo, espelhando a economia do capitalismo — a ideia de que o amor é importante é ridicularizada. Em seu ensaio “Love and Need: Is Love a Package or a Message?” [Amor e necessidade: o amor é um embrulho ou uma mensagem?], Thomas Merton argumenta que somos ensinados, dentro da estrutura do capitalismo competitivo de consumo, a ver o amor como um negócio: “Esse conceito de amor pressupõe que o maquinário de compras e vendas de necessidades é o que faz tudo funcionar. Considera a vida como um mercado e o amor como uma variação da livre-iniciativa”. Embora muitas pessoas reconheçam e critiquem a comercialização do amor, elas não veem outra alternativa. Sem saber amar ou até mesmo o que é o amor, muitas pessoas se sentem emocionalmente perdidas; outras buscam definições, formas de sustentar uma ética do amor em uma cultura que nega o valor humano e valoriza o materialismo.

A venda de livros com foco na recuperação, livros que buscam ensinar às pessoas maneiras de melhorar a autoestima, o amor-próprio e nossa intimidade nas relações, atestam que há certa conscientização pública sobre uma ausência na vida da maioria das pessoas. O livro de autoajuda de M. Scott Peck, A trilha menos percorrida, é extremamente popular porque aborda essa ausência.

Peck oferece uma definição eficaz de amor, útil para aqueles de nós que gostariam de fazer de uma ética do amor o núcleo de toda a interação humana. Ele define o amor como “vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o crescimento espiritual de outra pessoa”. Comentando acerca das atitudes culturais predominantes sobre o amor, Peck escreve:

Todos na nossa cultura desejam, até certo ponto, estar amando. Contudo, de fato muitos não estão. Portanto, concluo que o desejo de amar não é amor. O amor é expresso amando. É um ato de vontade — isto é, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos de amar. Escolhemos amar.

Suas palavras ecoam a declaração de Martin Luther King: “Decidi amar”, que também enfatiza a escolha. King acreditava que o amor é, “em última análise, a única resposta” para os problemas enfrentados por esta nação e por todo o planeta. Compartilho dessa crença e da convicção de que é ao escolhermos o amor, ao começarmos com o amor como base ética para a política, que nos posicionamos melhor para transformar a sociedade de maneira a aprimorar o bem coletivo.

É realmente incrível que King tivesse coragem de falar tanto sobre o poder transformador do amor em uma cultura em que essa conversa é, muitas vezes, vista como meramente sentimental. Nos círculos políticos progressistas, falar de amor é garantir que alguém será dispensado ou considerado ingênuo. Mas, fora desses círculos, há muitas pessoas que reconhecem abertamente que são consumidas por sentimentos de auto-ódio, que se sentem inúteis, que querem uma saída. Muitas vezes estão demasiado presas a um desespero paralisante, que as impede de se envolver efetivamente em qualquer movimento de mudança social. No entanto, se os líderes desses movimentos se recusarem a enfrentar a angústia e a dor da vida, nunca terão motivação para considerar a reabilitação pessoal e política. O movimento político que possa efetivamente atender a essas necessidades do espírito no contexto da luta pela libertação terá sucesso.

No passado, a maioria das pessoas aprendeu sobre as necessidades do espírito e atendia a elas no contexto da experiência religiosa. A institucionalização e a comercialização da igreja têm comprometido o poder da comunidade religiosa de transformar almas, de intervir politicamente. Ao comentar sobre a sensação coletiva de perda espiritual na sociedade moderna, Cornel West afirma:

Há um generalizado empobrecimento do espírito na sociedade estadunidense, sobretudo entre pessoas negras. Historicamente, houve forças culturais e tradições, como a igreja, que controlavam insensibilidade e falta de empatia. Entretanto, o empobrecimento do espírito hoje significa que a frieza e a falta de consideração estão cada vez mais difundidas. A igreja controlava essas forças ao promover uma noção de respeito pelos outros, um senso de solidariedade, um senso de significado e de valor que desencadeariam a força para lutar contra o mal.

Comunidades políticas vitais podem oferecer um espaço semelhante para a renovação do espírito. Isso só pode acontecer se abordarmos as necessidades do espírito por meio de teoria e prática políticas progressistas.

Muitas vezes, quando Cornel West e eu falamos com grandes grupos de pessoas negras sobre o empobrecimento do espírito na vida negra, o desamor, compartilhando que podemos nos recuperar coletivamente por meio do amor, a reação é emocionante. As pessoas querem saber como começar a prática de amar. Para mim, é aí que a educação para uma consciência crítica precisa entrar. Quando olho para a minha vida, procurando por um projeto que tenha me ajudado no processo de descolonização, de autorreabilitação pessoal e política, sei que aprender a verdade sobre como os sistemas de dominação operam foi o que me ajudou, aprender a olhar tanto para dentro quanto para fora com olhar crítico. Consciência é central para o processo do amor como prática da liberdade. Sempre que aqueles de nós que são membros de grupos explorados e oprimidos ousam questionar criticamente nossa localização, as identidades e alianças que configuram nosso modo de viver, começamos o processo de descolonização. Se descobrimos em nós mesmos o auto-ódio, a baixa autoestima ou o pensamento supremacista branco internalizado e os enfrentamos, podemos começar a nos curar. Reconhecer a verdade da nossa realidade, tanto individual quanto coletiva, é um estágio necessário para o crescimento pessoal e político. Essa é, geralmente, a fase mais dolorosa no processo de aprender a amar, aquela que muitos de nós tentamos evitar. De novo, uma vez que escolhemos o amor, instintivamente possuímos os recursos internos para confrontar essa dor. Movendo-se através da dor para o outro lado, encontramos a alegria, a liberdade de espírito que uma ética do amor traz.

Ao escolhermos o amor, escolhemos também viver em comunidade, e isso significa que não precisamos mudar sozinhos. Podemos contar com a afirmação crítica e o diálogo com companheiros que andam por um caminho semelhante. O teólogo afro-estadunidense Howard Thurman acreditava que aprendemos melhor sobre o amor como prática da liberdade no contexto da comunidade. Ao comentar esse aspecto de seu trabalho no ensaio “Spirituality out on The Deep” [Espiritualidade em profundidade], Luther Smith nos lembra de que Thurman sentiu que os Estados Unidos foram dados a diversos grupos de pessoas pela força vital do universo como um lugar para a construção de comunidade. Parafraseando Thurman, ele escreve: “A verdade se torna verdade em comunidade. A ordem social anseia por um centro (isto é, espírito, alma) que lhe dê identidade, poder e propósito. Os Estados Unidos, e todas as entidades culturais, estão em busca de uma alma”. Trabalhando dentro da comunidade, compartilhando um projeto com outra pessoa ou com um grupo maior, somos capazes de vivenciar alegria na luta. Essa alegria precisa ser documentada, pois, se focarmos apenas a dor ou as dificuldades que certamente são reais em qualquer processo de transformação, mostraremos apenas uma imagem parcial.

Uma ética do amor enfatiza a importância do serviço aos outros. Dentro do sistema de valores dos Estados Unidos, qualquer tarefa ou trabalho relacionado ao “serviço” é desvalorizado. O serviço fortalece nossa capacidade de conhecer a compaixão e aprofunda nossa percepção. Para servir aos outros, não posso enxergá-los como objeto, devo enxergar sua subjetividade. Compartilhando o ensinamento dos guerreiros Shambhala, a budista Joanna Macy escreve que precisamos de armas de compaixão e percepção:

Você precisa ter compaixão, porque ela lhe dá o combustível, o poder, a paixão para se mover. Quando você se abre para a dor do mundo, você se move, você age. Mas essa arma não é suficiente. Ela pode queimá-lo, então você precisa do outro — você precisa entender a radical interdependência de todos os fenômenos. Com essa sabedoria, você percebe que não se trata de uma batalha entre mocinhos e bandidos, mas que a linha entre o bem e o mal atravessa o terreno de cada coração humano. Com a percepção de nossa profunda inter-relação, você sabe que ações empreendidas com intenção pura têm repercussões em toda a teia da vida, para além do que você pode medir ou discernir.

Macy compartilha que compaixão e percepção podem “nos sustentar como agentes de mudança saudável” porque são “dons para reivindicarmos agora, na cura do nosso mundo”. Em parte, aprendemos a amar ao prestarmos serviço. Essa é novamente uma dimensão do que Peck quer dizer quando fala sobre nos estendermos para o outro.

O movimento pelos direitos civis tinha o poder de transformar a sociedade porque os indivíduos que lutam sozinhos e em comunidade por liberdade e justiça queriam que esses dons fossem para todos, e não apenas para quem estivesse sofrendo e sendo oprimido. Líderes negros visionários, como Septima Clark, Fannie Lou Hamer, Martin Luther King e Howard Thurman, alertaram contra o isolacionismo. Encorajaram as pessoas negras a olhar além de nossas próprias circunstâncias e a assumir responsabilidade pelo planeta. Esse apelo à comunhão com um mundo além do eu, da tribo, da raça, da nação, era um convite constante para expansão pessoal e crescimento. Quando uma multidão de pessoas negras começou a pensar apenas em “nós e eles”, internalizando o sistema de valores do patriarcado supremacista branco capitalista, pontos cegos se desenvolveram, e a capacidade de empatia necessária para a construção da comunidade foi reduzida. Para curar nosso corpo político ferido, devemos reafirmar nosso compromisso com uma visão daquilo a que King se referiu, no ensaio “Facing the Challenge of a New Age” [Enfrentando o desafio de uma nova era], como um compromisso genuíno com “a liberdade e a justiça para todas as pessoas”. Meu coração se alegra quando leio o ensaio de King, pois lembro do lugar para o qual a verdadeira libertação nos leva. Ela nos leva, além da resistência, para a transformação. King nos diz que “o fim é a reconciliação, o fim é a redenção, o fim é a criação da comunidade amada”. No momento em que escolhemos amar, começamos a agir contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a avançar em direção à liberdade, a agir de forma a libertar a nós mesmos e aos outros. Essa ação é o testemunho do amor como prática da liberdade.

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