Angela Davis analisa nosso potente feminismo negro

Em evento, ativista estadunidense destaca: legado de Marielle é combustível à resistência popular. Cita o trabalho de lideranças brasileiras em pautas cruciais no combate ao racismo: frear violência policial e o encarceramento em massa

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Por Paloma Vasconcelos, na Ponte Jornalismo | Foto: Sérgio Silva

Angela Davis já perdeu a conta de suas vindas ao Brasil. Ela disse oito, alguém da plateia gritou que foram mais. Mas ela nunca havia estado na região sudeste do país. Dessa vez, a Boitempo, editora que publica os livros dela em solo brasileiro, decidiu trazê-la para São Paulo.

Mulher, negra, feminista, marxista, intelectual, ativista: essa é a descrição da contracapa da edição brasileira de “Angela Davis: Uma Autobiografia”, escrita por Zezé Motta. Angela Yvonne Davis, 75 anos, é filósofa e professora nos Estados Unidos.

Em 1970, durante sua breve passagem pelo Partido dos Panteras Negras, a Angela, à época com 26 anos, foi acusada de conspiração, sequestro e homicídio, se tornando uma das 10 pessoas mais procuradas do FBI (Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos). Com muita força e firmeza, enfrentou o Estado mesmo condenada à morte. A campanha pela sua liberdade ganhou proporções mundiais com gritos de “Libertem Angela Davis” nos quatro cantos do mundo.

Mesmo sem querer, ela se tornou um dos principais nomes da luta antirracista, luta pelos direitos civis, abolicionista penal e do feminismo negro. Apesar de pedir que o protagonismo dessas lutas não seja personificado nela, Angela reconhece que a sua trajetória no passado a tornou uma referência mundial quando o assunto é mulheres, raça e classe. Mas pede: “olhem para as mulheres negras do Brasil, pois eu aprendi muito mais com elas do que vocês podem aprender comigo”.

“Acredito que é minha responsabilidade fazer com que o trabalho de figuras marcantes que estão engajadas nessa mesma luta aqui no Brasil, que a mensagem, que a produção acadêmica e que o ativismo seja também levada para os EUA”, destaca Angela ao citar nomes importantes do feminismo negro brasileiro como: a antropóloga e intelectual Lélia Gonzalez, a professora e política Benedita da Silva, a filósofa e fundadora da ONG Geledés Instituto da Mulher Negra Sueli Carneiro e a escritora, romancista e poeta Conceição Evaristo. “Nós, nos EUA, necessitamos ter acesso a essas escritas, a essas ideias e práticas que constituem o feminismo negro brasileiro, muito mais do que vocês necessitam de nossas referências”, completa Davis.

Pela primeira vez em São Paulo, Angela Davis tem reunido multidões. A primeira fala da filósofa aconteceu no sábado (19/10), durante o seminário “Democracia em Colapso?”, no Sesc Pinheiros, na zona oeste da cidade. Horas depois de liberar as vendas para assistir a palestra de Davis, os ingressos estavam esgotados. Foi quando a Boitempo liberou outra palestra na agenda de Davis, dessa vez gratuita e aberta ao público. A expectativa da editora era reunir 15 mil pessoas na parte externa do Auditório do Ibirapuera, na zona sul, na segunda-feira (21/10), o que se tornou realidade.

No estado de Doria e no país de Bolsonaro, uma pensadora negra e marxista encheu o parque do Ibirapuera com um público digno de um show de rock (e que parte dos espectadores batizou de “Angelapalooza” e “Davispalooza” – se referindo ao festival musical Lollapalooza). Meia hora antes do início da conferência “A liberdade é uma luta constante” já era difícil conseguir um lugar para sentar.

O público que lotava os gramados do Ibirapuera era realmente diverso. Mulheres e homens negros, de todas as idades, eram maioria, mas também haviam muitas pessoas LGBTs e mulheres e homens brancos. Todos escutavam atenciosamente cada palavra dita por Davis que, ao final de cada frase, era aplaudida e referenciada com gritos.

Para a assistente social, Gorete Martins, 34 anos, que até pouco tempo não se reconhecia como uma mulher negra, ouvir Angela Davis pela primeira vez tem um gostinho especial.

“É muito emocionante você se sentir reconhecida. Antes quando eu ouvia falar do feminismo e via que eu não me encaixava, eu não entendia, ficava pensando ‘que feminismo é esse que as pessoas falam tanto?’. Mas quando eu descobri o feminismo de pessoas que tinham o meu pensamento, vi que eu me reconheço nesse espaço, é aqui que eu me reconheço. foi aí que eu me aproximei do feminismo. Eu não me encaixo nesse feminismo branco”, relata à Ponte.

Os primeiros minutos de discurso de Angela Davis foram voltados para agradecer ao grande público que ali estava diante de seus olhos, a quem Angela disse que gostaria de ter tempo para cumprimentar um por um, e lembrar a força das lutas e manifestações em solo brasileiro.

“Eu sinto que todos nós somos parte de algo muito maior do que a soma de todos nós que estamos aqui presentes essa noite. Vocês me permitem lembrar da vasta quantidade de pessoas que compareceram à Marcha das Mulheres Negras em 2015? As mobilizações que ocorrem aqui em São Paulo contra a violência policial racista?”, questiona a filósofa.

Na sequência, Davis cita Marielle Franco, vereadora assassinada na noite de 14 de março de 2018 no Rio de Janeiro. Angela, mesmo 35 anos mais velha do que Marielle, crava: somos o legado dela. “E os grandes protestos que ocorreram em resposta ao assassinato de Marielle Franco? O espírito de Marielle nos deixa a todos imbuídos. Nós somos o legado dela. E por ela nós temos o dever de continuar a lutar em prol da justiça racial, pela justiça em prol das comunidades LGBT+, pelos movimentos dos sem-teto, pelos movimentos dos sem-terra, pela liberdade de Lula. Lula livre. Vamos lutar pela democracia e pelo socialismo. Marielle presente”, brada Angela Davis, ovacionada pelo público que segue com o grito por Marielle Franco.

Em uma hora de discurso, Angela Davis cita a importância de cuidarmos do meio ambiente, principalmente das queimadas na Amazônia e do derramamento de petróleo nas praias do Nordeste, e lembra que todos nós devemos muito aos povos indígenas. Depois, entra na questão de segurança pública e do racismo institucionalizado nas forças policiais.

“Eu não preciso explicar pra vocês essa questão da violência policial racista. Vocês aqui no Brasil sabem ainda melhor do que nós, nos Estados Unidos, como a violência policial pode devastar as nossas comunidades. A violência policial racista é ainda mais comum aqui no Brasil”, inicia.

Angela destaca que a morte de Ágatha Sales Félix, criança de oito anos assassinada no Rio de Janeiro em 20 de setembro de 2019, deveria ter causado comoção mundial. “Por que uma criança linda e negra deveria ser forçada a sucumbir sua própria vida em função de uma política de atirar antes de perguntar? A pessoa que atualmente ocupa o cargo de presidente neste país enfatiza que a polícia deveria atirar para matar. Mas não seria o caso que a violência policial e a violência perpetrada pelo estado ajuda a reproduzir a violência das gangues, a violência dentro das comunidades e, de forma mais ampla, a violência nos espaços íntimos?”, indaga a filósofa.

Em seguida, Angela fala sobre um dos assuntos que mais conhece: o encarceramento em massa. “Muitas dessas políticas são justificadas pela guerra às drogas. O Brasil deveria aprender com a experiência norte-americana de que quando a guerra contra as drogas é constantemente evocada como justificativa para que haja um aumento policial racista está servindo apenas como pretexto para matar pessoas negras”, critica.

A filósofa, que é uma ativista incansável pelo fim do encarceramento em massa e pelo abolicionismo penal, pede o fim das prisões. “A guerra contra as drogas acelerou o processo de encarceramento em massa nos EUA. E eu acredito que seja também parcialmente responsável pelos números que se expandem pelo número de encarcerados também no Brasil. Eu gostaria de enfatizar que nos EUA, como resposta aos esforços de se reformar o sistema carcerário, nós afirmamos que nós não queremos a reforma do sistema carcerário. Nós não reivindicamos uma reforma carcerária, nós queremos que o sistema carcerário seja extinto, abolido. A abolição ao sistema carcerário, não à forma do sistema carcerário”, declarou.

Davis enfatiza que o sistema prisional está diretamente ligado ao racismo, pois “se algumas pessoas negras podem ser acusadas de serem traficantes de drogas, então praticamente qualquer pessoa negra, todas as pessoas negras, particularmente aquelas que residem em determinados bairros e comunidades, podem ser considerados suspeitos e suspeitas”, denuncia Angela. “Esse é o pilar fundamental que está no centro do racismo. Se você não consegue atirar em um, atire no outro. Se você não consegue encarcerar um, encarcere aquele outro”, completa.

Angela menciona também a visita que fez no domingo (20/10) à Escola Florestan Fernandes, do MST (Movimento Sem-Terra) e o encontro com Preta Ferreira, liderança de um dos movimentos por moradia de São Paulo que esteve presa por 100 dias. Davis elogiou o trabalho dos movimentos por moradia e por terra e criticou a prisão de Preta.

“O estado está tentando criminalizar a luta em prol da moradia, tentando criminalizar os movimentos sociais. Estou muito feliz por poder comemorar, com todos e todas vocês, a liberdade de Preta Ferreira. Mas todas e todos vocês deveriam se mobilizar para apoiá-la durante o julgamento. E, é claro, como vocês sabem, a Preta Ferreira sempre fala que é importante libertar todas as pretas”, defende Angela Davis.

A deputada estadual de São Paulo Érica Malunguinho, primeira mulher trans negra eleita para um cargo no legislativo em todo o mundo, também foi citada. “E eu queria dizer que quisera eu que ela fosse representante no meu congresso. Como consideramos as lutas engajadas por mulheres negras por todo esse hemisfério, nós reconhecemos que não pode haver nenhuma democracia sem a participação plena das mulheres negras. Quando as mulheres se movimentam e se engajam em prol da liberdade, elas nunca representam a si mesmas sozinhas, elas representam todos que são membros de suas comunidades”, defende Davis, que cita sua famosa frase: “Afirmamos que quando as mulheres negras se erguem, o mundo inteiro se ergue conosco”.

No fim da conferência, a Ponte conversou com a agente de apoio operacional Kelly Cristina Marques, 45 anos, que estava muito emocionada em ouvir Angela Davis. “Dá muito orgulho e satisfação ver que muita gente tem interesse em mudar esse sistema capitalista que massacra a nossa população negra. Eu fico muito feliz com isso. Eu não tinha a noção de que tantas pessoas viriam aqui hoje. Falar de feminismo negro é uma luta importante, a mulher é sempre menosprezada. A luta do feminismo tem várias etapas”, conta.

Pela manhã, também nesta segunda-feira (21/10), Angela recebeu a imprensa. Falou por mais ou menos uma hora e respondeu perguntas de pelo menos 10 dos veículos que se preparam e se credenciaram para estar ali e ouvi-la.

Angela Davis falou muito sobre os assuntos que abordou durante a conferência aberta feita à noite e respondeu à Ponte sobre a importância de falarmos das lutas das pessoas trans e o papel fundamental que a mulher trans tem na sociedade: é de onde vem o impulso para a democracia.

Assim como na fala da noite, ela citou o trabalho que a deputada Érica Malunguinho tem feito como uma referência. “Me parece que às vezes temos que reconhecer a partir de espaços que são marginalizados é de onde vem o impulso para a democracia. Aqueles de nós que temos trabalhado contra a violência da polícia, a violência racial, acabamos reconhecendo que as mulheres negras trans são o alvo mais consistente da violência e se achamos que devemos radicar a violência de gênero no mundo, temos que focar nas mulheres negras trans porque da mesma forma que quando tivermos as mulheres negras livres, o mundo será livre”, afirmou Davis.

“Quando falamos que vidas negras importam, que a vida das mulheres negras importa, estamos falando de humanidade e temos que fazer o mesmo com mulheres trans. É importante não só falar em interseccionalidade, estamos tratando de questões universais e eu sou muito grata a comunidade LGBT e a comunidade trans que sempre luta contra o racismo”, finalizou a filósofa.

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