Afeganistão: a missão Joe Biden

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Surpresa no início do ano: o vice-presidente dos EUA vai às pressas a Islamabad, porque está se gestando uma iniciativa de paz que não inclui Washington

Mal começou 2011, e uma das grandes tendências que marcaram o panorama mundial nos últimos anos voltou a se manifestar: é a emergência de países destacados da antiga “periferia”. Cada vez mais interessados a participar das grandes disputas geopolíticas, eles resistem a arranjos que transformam seus territórios, e áreas de influência, em palcos de guerras armadas pelas grandes potências.

O cenário da novidade é a confluência entre Oriente Médio e Ásia Central. Intensificaram-se, nas últimas semanas, as articulações entre os governos da Turquia, Paquistão, Irã e Afeganistão, para uma solução que encerre o conflito neste último país. Elas tiveram início às vésperas do Natal — por iniciativa da Turquia, que age com ousadia crescente na região. Prosseguiram numa série de conversações que incluem o próprio Talebã, núcleo da resistência à presença norte-americana no Afeganistão. Estão descritas em texto a seguir, publicado no Asia Times e traduzido pelo coletivo Vila Vudu.

A série de diálogos alarmou os Estados Unidos, que se atolaram numa guerra trilionária e temem perder influência, após um acordo que tornaria inviável manter a ocupação. Por isso, o próprio vice-presidente Joe Biden vôou ontem (11/11) às pressas para a capital do Paquistão, onde manterá uma série de negociações. Há um aspecto favorável, no fato de ter sido escolhido para a missão, por Barack Obama. Biden tem sustentado, há meses, a importância de iniciar rapidamente negociações de paz no Afeganistão. Reconhece que elas só terão sentido se envolverem o Talibã. Choca-se com a postura do general David Petraeus, chefe do Comando Central do Exército, obcecado pela idéia de que uma grande ofensiva (“surge”) poderá levar a guerra a um desfecho favorável a Washington.

Será preciso esperar alguns dias, para conhecer os desdobramentos da missão e, em especial, como reagirão Turquia e Irã. Mas os fatos novos parecem deixar claro que as chances de resolução pacífica de conflitos alargam-se, quando há, no tabuleiro, outros parceiros, além das grandes potências.

EUA curvam-se ao Paquistão

M K Bhadrakumar, do Asia Times Online | Tradução: Vila Vudu

A visita repentina, não agendada, do vice-presidente dos EUA Joe Biden a Islamabad essa semana evidencia o embaraço e a ansiedade de Washington, que teme ser excluída de uma iniciativa regional com vistas ao processo de paz no Afeganistão que pode estar em vias de decolar. A rápida sequência de eventos da última quinzena surpreendeu Washington.

Houve muitos momentos díspares no relacionamento EUA-Paquistão ao dos últimos nove anos, desde a invasão norte-americana ao Paquistão. Mas a missão de Biden só pode ser comparada à visita a Islamabad de meados de outubro de 2001, pelo então secretário de Estado Colin Powell. Se a missão Powell foi seminal com vistas à invasão do Afeganistão pelos EUA, a missão Biden bem pode revelar-se um primeiro passo intimamente relacionado à semeadura de sementes de paz.

A rota que levou Biden a Islamabad começou em Istanbul na véspera do Natal quando, como parte da iniciativa de Ancara iniciada há três anos, o presidente da Turquia Abdullah Gul hospedou um encontro de cúpula do fórum trienal que reúne além do presidente da Turquia, os presidentes do Paquistão e do Afeganistão, Asif Zardari e Hamid Karzai. Os turcos levam muito a sério o papel de mediadores e têm obtido relativo sucesso no trabalho de aproximar Kabul e Islamabad, como países vizinhos – missão na qual os EUA só conheceram repetidos fracassos. Nesse sentido, as credenciais da Turquia não podem ser subestimadas.

Um lar para os Talibã

A Turquia é “aliada” de EUA, Rússia e Paquistão e há muito tempo amiga da China; mantém relações “normalizadas” com o Irã e a Arábia Saudita e é membro ativa da Organização da Conferência Islâmica; a Turquia reclama a herança “turca” da Ásia Central; Ankara mantém relação de equilíbrio com vários grupos afegãos e manteve uma linha aberta de contato com a liderança dos Talibã no final dos anos 1990s; a Turquia é país membro da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), com forças que participam do contingente das Forças Internacionais de Assistência à Segurança [orig.International Security Assistance Force] e sempre se saíram bem; e a Turquia é generosa doadora de fundos para a reconstrução do Afeganistão.

A política externa da Turquia passou a ser extremamente inovadora e ambiciosa. Ankara trabalhou muito para reunir Kabul e Islamabad e agora aspira a uma escalada audaciosa aos cumes do Hindu Kush.

A Turquia está considerando a possibilidade de permitir a abertura de um “escritório de representação” dos Talibã em território turco. Karzai diz que a ideia veio de “dignitários próximos dos Talibã”. Seja como for, a ideia apareceu no encontro tripartite em Istanbul, e Turquia e Paquistão manifestaram-se favoráveis. Interessante é que, até agora, os Talibã tampouco manifestaram-se contra.

O ministro das Relações Exteriores da Turquia Ahmet Davutglu disse depois da reunião que “Estamos prontos a corresponder a essas expectativas em todos os níveis. A Turquia acompanha de perto todos os passos. Estamos prontos para acompanhar, na Turquia, qualquer processo que interesse ao governo afegão e também estamos prontos a contribuir em processos que possam estar em andamento fora da Turquia.”

Pouco antes de Karzai deixar Kabul rumo a Istanbul, mandou o presidente do Alto Conselho Afegão para a Paz [orig. Afghan High Council for Peace (HCP)] Burhanuddin Rabbani  (ex-presidente) em visita a Teerã. Em apenas alguns dias, Teerã recebeu outro importante visitante afegão, Mohammed Fahim, figura chave na antiga Aliança do Norte e atualmente vice-presidente. (Curiosamente, um veterano “mão-afegã” de Moscou, Viktor Ivanov, ex-general da KGB que chefia hoje a agência russa anti-narcóticos, também chegou a Teerã no mesmo dia que Fahim.)

Karzai obviamente sondou os iranianos sobre seu projeto de iniciar um diálogo intra-afegão. Mas a posição de Teerã parece ambivalente, embora as declarações sejam consistentemente no sentido de que a presença continuada de soldados dos EUA está agravando as tensões regionais. A visita de Fahim sugere que Teerã trabalha para manter abertas as opções. A recente discussão sobre o suprimento de petróleo iraniano para o Afeganistão sugere que haja algum atrito entre Teerã e Kabul. Kabul espera, em breve, a visita do poderoso presidente do Parlamento iraniano Ali Larijani.

Antes de viajar a Teerã, Rabbani falou a uma grande assembleia-conselho (jirga) regional de paz em Nangarhar convocada pelo governo, com mais de 800 delegados de várias províncias do leste dominado pelos pashtuns, nas quais os Talibã continuam ativos. Rabbani dirigiu-se aos Talibã. “Esse é o seu país. O Afeganistão é o seu país. Claro que todos cometem erros. Temos de trabalhar juntos para corrigir os erros.”

A Jirga decidiu que a reintegração dos Talibã terá de ser feita conforme valores islâmicos. “Façamos o que fizermos, terá de ser baseado no Islã” – disse Rabbani. A Jirga tomou outra decisão importante: no processo de reconciliação, deve-se assegurar que os Talibã tenham espaço para “negociar com companheiros afegãos, não com as forças da coalizão [liderada pelos EUA].”

A virada paquistanesa

Depois que Karzai voltou de Istanbul, as coisas aceleraram-se. Na última 3ª-feira, Rabbani liderou uma delegação de 25 membros que foi a Islamabad a convite do primeiro-ministro do Paquistão Yousuf Gilani. É virada significativa, pelo Paquistão, que, antes (como os Talibã e o grupo Hezb-i-Islami), jamais deram grande importância ao Alto Conselho Afegão para a Paz. Evidentemente, Islamabad está reconsiderando posições assumidas antes.

Verdade é que o chefe-geral do exército paquistanês general Parvez Kiani recebeu Rabbani em Rawalpindi na 4ª-feira. Os releases da imprensa oficial informavam que discutiram “temas de mútuo interesse”. O fato de Kiani ter empenhando o próprio prestígio é muito significativo.

O encontro em Rawalpindi indica apoio dos militares paquistaneses ao papel de liderança que Rabbani assumir em qualquer diálogo infra-afegão. Mas, muito mais importante que isso, inclui mensagem que chegou clara e alta a Washington – de que, com ou sem envolvimento dos EUA, e no caso bem provável de que em futuro próximo comece um diálogo, o Paquistão dará andamento a uma iniciativa regional que envolverá Karzai, porque não há tempo a perder e interessa a Washington aparecer na mesma página.

O Paquistão criticou a estratégia de ‘avançada’ [ing. surge], de David Petraeus no Afeganistão e recusou-se a assumir operações nas áreas tribais do Waziristão Norte, apesar de repetidamente ‘convocado’ pelos EUA.

Karzai não poderia ter escolhido melhor nome que Rabbani para iniciar o processo de paz. Rabbani tem antigos laços com os Talibã que datam da jihad dos anos 1980s. Os contatos entre ele e o Paquistão são, de fato, ainda mais antigos, desde meados dos anos 1970s, antes da revolução comunista. Rabbani é intelectual islâmico muito conhecido nos círculos islâmicos no Paquistão, especialmente pela liderança dos partidos Pasand islâmicos, como Jamiat Ulema-e-Islam. Durante ajihad, Rabbani foi um dos “Sete de Peshawar” e manteve extensas negociações com militares e os serviços de inteligência paquistaneses.

Rabbani é também um dos principais líderes tadjiques que presidem o Jamiat-i-Islami, e é importante trazer os tadjiques para a discussão de qualquer acordo afegão. É veterano líder mujahideen e mantém ampla rede de contato com comandantes como Jalaluddin Haqqani que estão com os Talibã. Rabbani pode ser muito útil para construir uma ponte pela qual figuras controversas como Jalaluddin possam trafegar rumo ao centro da política afegã, algum dia.

Tudo isso considerado, a decisão de Kiani, de apostar seu próprio prestígio em Rabbani pode ser vista como mudança significativa na estratégia do Paquistão.

Os EUA temem a ‘exclusão’

A velocidade com que Kabul e Islamabad estão construindo e implantando uma diálogo intra-afegão pegou de surpresa os EUA. Os EUA ainda repetem que seria prematuro qualquer contato com os Talibã. A missão de Rabbani em Islamabad, sobretudo, deve ter feito Washington saltar na cadeira. Os EUA não gostam de Rabbani por sua marcada tendência nacionalista-islâmica, por seus contatos intermitentes com o Irã e por seu virulento antiamericanismo, que Rabbani jamais se preocupou em esconder.

Washington sente que está sendo ‘excluída’ em momento em que tantas coisas acontecem. Ironicamente, descobre que foi posta no mesmo barco que Teerã. O enviado especial dos EUA para o Afeganistão Frank Ruggeiro imediatamente partiu para Islamabad na 3ª-feira, para tomar pé no rápido fluxo de eventos. Ruggeiro foi recebido com muitas gentilezas, foi recebido por Kiani, mas tudo indica que o Paquistão não mudou os planos segundo os quais as conversações devem começar por contato com os Talibã.

Imediatamente depois da viagem de Ruggeiro, o presidente Barack Obama mandou Biden para Islamabad. A decisão de Obama, de escolher Biden como enviado, merece exame cuidadoso. Em poucas palavras, Biden tem repetido que o Talibã não representa qualquer ameaça real aos interesses da segurança nacional dos EUA; e que um meio de por fim à guerra seria negociar com eles.

Petraeus, por outro lado, espera poder intensificar as operações militares para enfraquecer os Talibã a ponto de pô-los de joelho, reduzidos à condição de aceitar qualquer paz, sejam quais forem os termos, que os EUA lhes imponham. Petraeus trabalha com objetivos de longo prazo. Biden tem muita pressa.

Poucos acreditam, dentro do establishment de segurança dos EUA, no que diz Petraeus sobre sua estratégia estar começando a dar resultados. Ao nomear Biden para chefiar a missão em Islamabad, Obama parece estar sinalizando que mantém abertas outras vias.

Zardari visitará Washington essa semana, ao mesmo tempo em que Biden partiu às pressas para Islamabad. Essa estranha movimentação de ‘duas mãos’ mostra bem a profundidade da ansiedade nos EUA ante o afrouxamento dos laços EUA-Paquistão e ante a evidência de que o interlocutor chave é Kiani. O assassinato do governador da província paquistanesa do Punjab, Salman Taseer, e as ondas de pós-choque que provocou na sociedade e na política do Paquistão só tornaram as águas ainda mais turvas, e fazem aumentar a ansiedade, na Casa Branca, sobre o rumo que tomaram as relações EUA-Paquistão, nos últimos meses.

Considerados os briefings distribuídos por vários altos funcionários do governo, o Washington Postassim resumiu os principais elementos da missão de Biden:

Biden procurará uma “troca franca de ideias sobre visão e prioridades” com Kiani, sobre o fim da disputa no Afeganistão e “a estratégia de longo prazo para a região”.

– Os EUA não devem exigir início imediato de operações militares paquistanesas no Waziristão Norte.

– Biden afirmará categoricamente que os EUA não têm intenções de escalar nas operações militares além-fronteira em território paquistanês.

– Biden verificará com certeza quais são as necessidades, expectativas e exigências que o Paquistão espera ver atendidas em troca de mais ampla cooperação na guerra.

– Os EUA oferecerão novo pacote de assistência, com elementos militares, de inteligência e econômicos.

– Os EUA reforçarão a presença militar no lado afegão da fronteira com o Paquistão e intensificarão os acordos de cooperação e partilha de inteligência com o Paquistão, sobre as atividades da Índia no Afeganistão.

O mesmo Washington Post chamava a atenção para “mudança significativa no pensamento do governo dos EUA” e para a inclinação de Obama na direção de unir-se ao processo de paz e reconhecer que o Paquistão tem “papel importante” a desempenhar, “senão papel dominante”, nas conversações de reconciliação com os Talibã.

No fundo, o que Washington está fazendo é tentar converter em virtude e mérito dela, o que faz por imperiosa necessidade – o que fazem quase sempre os bons políticos. Em termos ideais, os EUA só desejam que o Paquistão contribua vigorosamente para o esforço de guerra dos EUA.

Mas o ‘coração da matéria’ é que, se e quando as conversações intra-afegãos ganharem ímpeto, brotadas de uma iniciativa regional de Afeganistão, Paquistão e Turquia (e, talvez, com a aquiescência do Irã), toda a posição dos EUA naufragará.

O governo Obama estará reduzido à posição absurda e insustentável, de insistir cegamente em continuar uma guerra que nem o povo afegão nem as potências regionais desejam.

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