Darcy Ribeiro e a questão étnica na Bolívia

Pensador advertia: independência nunca chegou aos povos indígenas. Novas rebeldias multiétnicas podem colocar em xeque o conceito de nação colonizada. Por isso elite persegue collas, destrói wiphalas e quer fim do Estado plurinacional

.

Darcy Ribeiro, que ficou sem escola para divulgar o seu próprio pensamento, dizia que a luta de classes iria cada vez mais enredar-se na etnia. Etnia é luta de classes. A nova guerra do Paraguay está se configurando na Bolívia: Trump, UDR bandeirante e Planalto Bolsonaro.
Vamos tacar fogo na rede de dormir.
Amém. (Gilberto Felisberto Vasconcellos)

Uma das características marcantes do recente golpe de Estado na Bolívia é o seu caráter racista. Os indígenas, chamados de “collas” pela classe média urbana tradicional, são perseguidos, espancados e mortos. A Wiphala, bandeira que simboliza as populações originárias, é queimada e vilipendiada.

Segundo Álvaro Linera, vice-presidente eleito:

“O ódio racial é a linguagem política desta classe média tradicional. De nada servem seus títulos acadêmicos, viagens e fé porque, ao final, tudo se dilui perante a linhagem. No fundo, a estirpe imaginada é mais forte e parece aderida à linguagem espontânea da pele que odeia, dos gestos viscerais e de sua moral corrompida”.

Impossível não associar esse cenário à obra de Darcy Ribeiro. O pensador brasileiro, muito em razão do exílio imposto pelo golpe de 641, concentrou suas energias no estudo dos dilemas do povo latino-americano. Vou utilizar aqui alguns trechos de seu livro América Latina: a pátria grande, cuja primeira edição é de 1986.

Darcy diferencia três principais configurações histórico-culturais de povos na América Latina, segundo seus processos de formação: os povos novos, formados pela confluência de brancos ibéricos, índios tribais e negros escravos, que resultou em um ente étnico novo, diferente de suas matizes e ainda em busca de uma identidade (brasileiros, colombianos, venezuelanos, cubanos); povos transplantados, frutos da imigração massiva de europeus que reproduziram o seu modo de viver e sepultaram a antiga formação hispano-índia (argentinos, uruguaios) e povos-testemunho, que sobreviveram ao choque das altas civilizações asteca, maia e incaica com os invasores europeus, preservando suas características originais (peruanos, mexicanos, bolivianos).

O antropólogo classifica os grupos indígenas latino-americanos em duas categorias: as microetnias tribais, que englobam milhares de povos espalhados pelo continente em grupos que variam de dezenas a uns poucos milhares, e as macroetnias, que correspondem às grandes civilizações, cujo desenvolvimento técnico possibilitou um notável contingente demográfico que persiste até os dias atuais; são incluídos nesta categoria os quéchuas e aimarás do altiplano andino, etnias predominantes na população indígena boliviana.

Ao analisar os povos-testemunho, Darcy atribui especial importância à questão étnica (às “indianidades”) e faz uma interessante crítica à visão que reduz a luta de classes a uma questão puramente econômica:

“Todos esses povos foram vistos até recentemente como campesinatos e olhados sempre debaixo da tola suposição de que com uma boa reforma agrária, progredindo, eles deixariam da mania de ser índios para se integrar alegremente nos países que viviam. Hoje ninguém duvida de que eles são povos oprimidos, aspirantes à autonomia. Sabem clara e sentidamente que são os descendentes daqueles que viram um dia chegar e se instalar em suas terras o invasor branco, que se apropriou de todos os bens e os submeteu ao cativeiro. Vieram depois — eles viram e não esqueceram — os crioulos nascidos na terra declarar a ‘independência’ para continuar exercendo o mesmo domínio opressor sobre eles”.

“Os fanáticos das lutas de classe — esquecidos de que a estratificação social é coisa recente, muitíssimo mais nova que as entidades étnicas, e de que é até provável que as classes desapareçam antes das nacionalidades — teimando em negar a identidade desses indigenatos como povos oprimidos, contribuíram condenavelmente para que eles continuassem sendo oprimidos”.

Ressaltamos que nos últimos catorze anos a economia boliviana cresceu de 9 para 42 bilhões de dólares, e a extrema pobreza foi reduzida consideravelmente. Então qual o verdadeiro motivo de tanto ódio? Talvez a resposta esteja na quantidade de indígenas que ascenderam a uma “nova classe média”, na democratização do acesso à saúde e educação e na “indianização” do Estado, com funcionários de raiz indígena ocupando mais de 50% dos cargos da administração pública. Para Álvaro Linera:

“Trata-se, portanto, de um colapso do que era uma característica da sociedade colonial: a etnia como capital, ou seja, do fundamento imaginado da superioridade histórica de classe média por sobre as classes subalternas porque aqui, na Bolívia, a classe social só é compreensível e se torna visível sob a forma de hierarquias raciais. Que os filhos desta classe média tenham sido a força de choque da insurgência reacionária é o grito violento de uma nova geração que vê como herança do sobrenome e a pele se esvai perante a força da democratização dos bens”.

O projeto de um Estado plurinacional e intercultural, base da Constituição de 2009, ratificado pela população através de um referendo, é o alvo principal deste golpe miliciano-fundamentalista. Trata-se de um evidente retrocesso civilizatório, que não será aceito pacificamente pela maioria indígena, e, a depender da evolução dos acontecimentos, a própria integridade territorial da Bolívia estará ameaçada, ressurgindo velhos anseios separatistas2.

Darcy Ribeiro, ao comparar a luta de alguns povos europeus por autonomia (citava os bascos e flamengos; atualmente nos cabe destacar a luta dos catalães) com a dos povos originários na América latina, destacava que:

“Se isso ocorre lá, na América Latina, onde a identidade dos povos indígenas é muito mais remarcada e diferenciada e onde a opressão que eles sofreram muito mais cruel e continuada, a tendência é para que estalem rebeldias ainda maiores, que podem resultar em verdadeiras guerras interétnicas. É até provável que elas mudem o quadro atual das nacionalidades latino-americanas onde sobrevivem estes indigenatos; ou, ao menos, que transfigurem seu caráter para forçá-los a deixar de ser estados nacionais unitários oprimindo sociedades multiétnicas, para serem estados plurinacionais”.

Dez anos depois de finalmente concretizado, o sonho de uma Bolívia verdadeiramente democrática está sendo desfeito. Não pelo suposto apego ao poder do presidente eleito Evo Morales, mas sim pelos conflitos étnicos e de classe. Cabe a nós, brasileiros, povo-novo que luta para reencontrar o próprio caminho rumo à soberania perdida, apoiar a resistência dos irmãos bolivianos.

Viva a Pátria Grande!

Referências:

Ribeiro, Darcy. América Latina: a pátria grande. 3. Ed. São Paulo: Global, 2017;
Brasil de Fato;
Carta Maior;
Vasconcellos, Gilberto Felisberto. Leonel Brizola, São Paulo e índios.

1 Darcy Ribeiro residiu no Uruguai, Venezuela, Peru e Chile. Retornou ao Brasil em dezembro de 1974.

2 Sobre o separatismo na região da “meia-lua”: https://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/O-racismo-separatista/2/24093.

Leia Também:

Um comentario para "Darcy Ribeiro e a questão étnica na Bolívia"

  1. josé mário ferraz disse:

    O que seria independência? Se considerada como direito de poder praticar qualquer ação não antissocial, povo nenhum é independente por ser subjugado à obrigação de promover vida faustosa à multidão de parasitas sociais representantes de deus e da política.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *