Uberização e a insistente ideia de “autonomia”

PLC dos Apps legaliza a informalidade digital e transfere os riscos aos trabalhadores. Em síntese, direitos são negados em nome da modernização das relações laborais e de uma ambição neoliberal: eliminar o tempo de trabalho não produtivo

Imagem publicada na revista satírica Der Neue Postillon em Zurique, Suíça (1896)
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Se a configuração atual do mundo do trabalho não foi constituída a partir de grandes rupturas, mas é fruto de mudanças moleculares, que foram ocupando progressivamente os poros do universo laboral, alguns mestres do pensamento social brasileiro identificaram certas tendências quando elas ainda eram embrionárias e pouco perceptíveis, como é o caso de Francisco de Oliveira.

No clássico texto O Ornitorrinco, Chico de Oliveira identifica uma tendência progressiva de desaparecimento da jornada de trabalho, pois essa seria um obstáculo para o aumento da produtividade do capital. Segundo Chico, o aumento da produtividade depende da diminuição entre o tempo de trabalho total e o tempo de trabalho de produção. Isso porque, o capital tem uma luta constante para tentar diminuir a distância entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho. Em termos didáticos, imaginem um trabalhador de escritório, assalariado, que dispõe de uma jornada diária de 8 horas. É óbvio que o indivíduo não produzirá durante as suas 8 horas de trabalho, pois será remunerado em momentos de não trabalho durante a jornada (idas ao banheiro, uso do celular, períodos ociosos e sem demanda, etc).

Entretanto, algumas atividades, como o comércio informal de ambulantes, excluem o tempo de trabalho não produtivo, fazendo com que o rendimento do trabalhador dependa “do resultado da venda dos produtos-mercadorias”1, pois o indivíduo só receberá o pagamento quando ocorrer a realização do valor da mercadoria. Exemplificando a questão, o ambulante só recebe algum valor na medida em que vende um refrigerante e, ao mesmo tempo, seu rendimento ocorrerá na proporção de refrigerantes vendidos. O trabalho informal representa um salto em direção à produtividade, pois “o capital usa o trabalhador somente quando necessita dele”2, na exata medida da demanda do capitalista.

A existência de uma jornada de trabalho é um obstáculo para que o capital possa diminuir a distância entre tempo de trabalho total e tempo de trabalho de produção. Chico de Oliveira está anunciando que a jornada de trabalho e os direitos inerentes a ela, por serem um obstáculo para o aumento da produtividade, serão cada vez mais eliminados dos postos de emprego. Nas palavras do sociólogo pernambucano: “o setor informal apenas anuncia o futuro do setor formal”3.

É curioso observarmos que Chico escreve O Ornitorrinco em 2003 e, neste momento, anuncia a aposta de que o trabalhador sob demanda, típico do emprego informal, irá se espalhar no universo laboral, com a progressiva exclusão da jornada de trabalho. A empresa Uber, que dá nome ao fenômeno da uberização, foi criada em 2009 e começa a operar no Brasil apenas em 2015.

Uberização e a consolidação do trabalhador just in time

Uma característica central da uberização é a transformação de trabalhadores em trabalhadores just in time, ou seja, a imposição de uma disponibilidade permanente ao trabalho por parte dos indivíduos, consolidando um trabalho sob demanda. Assim, embora o indivíduo esteja permanentemente disponível para o trabalho, receberá tão somente pelas demandas pontuais que realizar. De acordo com Ludmila Abílio, “trata-se da redução do trabalhador a um fator de produção que deve ser utilizado na exata medida das demandas do capital”4.

A consolidação do trabalhador just in time aparece como uma forma moderna de informalidade, pois o motorista da Uber ou o entregador do iFood são remunerados na exata medida das demandas da empresa-plataforma. Essa informalidade digital significa que “para esses trabalhadores, permanecer na rua, disponível para a empresa, durante 18 horas por dia não significa ser remunerado por 18 horas de trabalho. A condição do trabalhador just in time é estar disponível para ser imediatamente utilizado, mas ser remunerado unicamente pelo que produz”. Assim como o ambulante receberá de acordo com o número de produtos que vender, o entregador terá seus rendimentos na proporção dos pedidos que realizar.

Não é por acaso que no GT criado para regulamentar o trabalho por aplicativo, uma das maiores reivindicações dos entregadores é o pagamento da hora logada. De acordo com Leonardo, uma das lideranças que participa do GT: “É preciso acabar com o tempo grátis que o trabalhador fica à disposição da plataforma: tempo logado é tempo de trabalho e precisa ser pago”5. Se o capital possui uma luta constante para diminuir a distância entre tempo de trabalho e de não trabalho, a consolidação do empregado just in time resolve essa disputa em favor das empresas aplicativos.

Para Marx, o salário constituía um capital variável, representando um adiantamento do capitalista ao trabalhador, antes da realização do valor das mercadorias6. Um assalariado que produzia sapatos não dependia da venda dos sapatos para receber um pagamento. Na informalidade dos ambulantes, bem como na dos motoristas e entregadores de aplicativo, os rendimentos dependem da realização do valor das mercadorias (sejam elas um bem material, imaterial ou um serviço).

O salário aparece como adiantamento do valor ao trabalhador pelo fato de que o capitalista está comprando a força de trabalho e os meios de produção para, futuramente, os indivíduos produzirem um valor que será realizado com a venda das mercadorias. Na representação descrita por Marx no livro 2 de O capital: D-M (T e Mp) …. Produção …..M’-D’7. Assim, o capitalista paga o salário ao trabalhador, adiantando um valor que ele ainda não produziu. Na informalidade digital não há esse adiantamento, pois o indivíduo só receberá quando realizar a venda das mercadorias, de tal modo que a extração da mais valia ocorre sem que o valor seja adiantado ao trabalhador. Embora o trabalho por peça esteja previsto no artigo 78 da CLT desde a década de 40, a expansão dessa modalidade tem se espraiado mais intensamente nos últimos dez anos.

É comum observarmos, em alguns estudos sobre uberização, o uso da categoria salário por peça – abordada por Marx no livro 1 de O capital – para explicar o pagamento recebido pelos entregadores ou motoristas de aplicativo8. Embora essa categoria seja útil para compreendermos o trabalho por plataformas, há uma diferença fundamental que é esquecida nessa explicação. No salário por peça, o trabalhador não recebe apenas quando há a realização do valor da mercadoria produzida. Em termos didáticos, o marceneiro não precisa que a cadeira que produziu seja vendida para que ele receba o pagamento. No caso dos vendedores ambulantes, e guardadas as diferenças, no caso dos entregadores plataformizados, o pagamento depende da realização do valor da mercadoria.

A jornada de trabalho – e os direitos inerentes a ela – tornou-se um obstáculo para a acumulação do capital, de modo que tende a ser paulatinamente desconstruída. Essa desconstrução de direitos historicamente conquistados ganha a aparência, todavia, de uma modernização das relações laborais. Quem quiser embarcar na locomotiva da modernidade que se acostume a jogar fora seus direitos. Como disse Gilmar Mendes em decisão do STF sobre o tema, as decisões da Justiça do Trabalho que buscam garantir determinados direitos aos trabalhadores uberizados são “uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção, os quais têm sido acompanhados por evoluções legislativas nessa matéria”9. A evolução, nesse caso, seria retornar às condições de trabalho do século XIX10.

O Projeto de Lei apresentado pelo governo federal no dia 4 de março11, ao criar a figura do trabalhador autônomo por plataformas está, em verdade, legalizando a informalidade digital e legitimando que os riscos da atividade sejam suportados pelo empregado, mesmo que parte dos seus ganhos sejam extraídos pelas empresas aplicativos. Na disputa entre capital e trabalho, mais uma vez a solução é construída em benefício dos 0,1% da população. O trágico da situação é lembrarmos que os interesses beneficiados pelo projeto de lei são daquelas mesmas frações de classe que apoiaram o golpe parlamentar em 2016 e a eleição da extrema direita nas últimas duas eleições.


Notas:

1 OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 136

2 OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013.

3 OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 136.

4 ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Revista Estudos Avançados – IEA – USP, v.34, n. 98, p.111-126, 2020.

5 BRASIL DE FATO. Representantes dos trabalhadores por aplicativo rejeitam proposta das empresas e indicam greve, 2023.

6 OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 137.

7 D = Dinheiro; M = Mercadoria. T e Mp significam, respectivamente, trabalho e meios de produção. Assim, o capitalista utiliza o dinheiro para comprar duas mercadorias, quais sejam, força de trabalho e meios de produção. M’ = Mercadoria e mais valor e D’ = dinheiro e mais valor.

8 Em síntese, se no salário por peça o marceneiro recebe de acordo com o número de cadeiras que produz, e não de acordo com a jornada de trabalho, os entregadores do Ifood, de forma similiar, recebem na proporção das encomendas que realizam.

9 UOL. STF aceitou 63% dos pedidos para anular vínculo de emprego.

10 KREIN, José Dari; DUTRA, Renata. Trabalho: o novo seria voltar ao século XIX? Publicado em: https://outraspalavras.net/author/kreindutra/

11 BBC. Motoristas de app: O que pode mudar com projeto de lei que regulamenta trabalho por aplicativo. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjq807jg85qo.

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