Quando a democracia morre no portão da empresa

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Em pleno século 21, sobrevivem ambientes marcados por nepotismo, processos decisórios fechados e irracionais, intrigas palacianas, comando errático de autocratas incompetentes e despóticos

Por Thomaz Wood Jr, na CartaCapital

Como vaticina a conhecida citação de Winston Churchill: “Diz-se que a democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as outras que foram tentadas”. O fato é que, mesmo aos trancos e barrancos, a democracia vem avançando no planeta. Nas últimas décadas, progrediu na América Latina, espalhou-se pelo Leste da Europa e agora contamina o Norte da África e Oriente Médio.

Curiosamente, a tendência não parece causar impacto sobre o mundo corporativo. Neste século XXI, há de se reconhecer, as organizações são mais transparentes, abertas e participativas do que o foram no século XX. No entanto, para muitos profissionais, ir ao trabalho equivale a deixar diariamente o território suíço e passar uma longa jornada de labuta na Coreia do Norte. E pior: como tais jornadas frequentemente transbordam o fictício horário comercial, esses profissionais se veem habitando permanentemente em Pyongyang, sob o comando d’algum Kim Jong-il, o “Querido Líder”.

Por falta de opção, por comunidade ou até por comungar com o “regime”, esses infortunados aturam diariamente manifestações de nepotismo, processos decisórios fechados e irracionais, intrigas palacianas e o comando errático de autocratas incompetentes e despóticos. Alguns se aventuram com sucesso além das entranhas corporativas; outros fogem de uma caverna para cair em outra igualmente insalubre para a mente e para a alma.

Sociólogos e outros estudiosos vêm se debruçando sobre o fenômeno do poder e do controle social nas organizações. Não faltam artigos e livros, a desvendar as estranhas entranhas empresariais. Os observadores mais críticos percebem as grandes empresas como Leviatãs, a espalhar seus tentáculos e submeter funcionários e comunidades.

A capacidade de domínio dessas criaturas vem, naturalmente, de seu peso econômico. Governos autoritários usam a lei, forjada em interesse próprio, e a força bruta. Os Leviatãs corporativos usam a tecnologia, a autoridade que emana da hierarquia e a cultura organizacional. Nas linhas de produção, as máquinas determinam os tempos e movimentos. Nos escritórios e nas centrais de atendimento, a informática controla o ritmo e até o humor. Na pirâmide organizacional, os habitantes dos andares mais altos definem direções e ações para os vizinhos dos andares de baixo. A cultura organizacional é a ferramenta mais moderna para lavar cérebros e padronizar atitudes e comportamentos. Onde a hierarquia falha e a tecnologia perde eficiência, a cultura organizacional ajuda a manter o controle.

A novidade (nem tão recente) é que esses jogos de dominação agora transcendem as organizações e envolvem as cadeias produtivas. Como se explica a extraordinária capacidade de algumas empresas de informática e artigos esportivos de gerar lucros, enquanto seus fornecedores, responsáveis pela fabricação dos produtos, reduzem custos e pagam salários miseráveis? Como se explica a invejada competência de alguns fabricantes de refrigerantes para ganhar dinheiro, enquanto seus “parceiros”, responsáveis pela volumosa produção e pulverizada distribuição, lutam para se manter à tona do equilíbrio financeiro?

A dinâmica competitiva que se desenhou a partir da abertura de mercado, em décadas recentes, alterou profundamente as cadeias produtivas. Hoje, as empresas operam em redes complexas de fornecedores, distribuidores, transformadores, subcontratados e outros agentes. A conta é sempre paga pelo cliente final, mas a distribuição do bolo depende da capacidade de cada agente submeter os demais, capturando-lhes as margens.

As empresas maiores levam vantagem, mas não reinam absolutas. Outros fatores podem também garantir um lugar ao sol: uma marca valiosa ou uma reputação sólida, alimentada por vultosas verbas publicitárias; as bênçãos do governo, por meio de concessões e outras formas de proteção; o acesso privilegiado a fontes de matéria-prima; o acesso facilitado a recursos financeiros; a presença garantida em determinados mercados ou o domínio de certos canais de distribuição.

O quadro que se esboça é desafiador: redes de empresas permanentemente em movimento, umas lutando para subjugar as outras (sejam concorrentes, fornecedores ou clientes), para ampliar sua “extração de valor”. Ao mesmo tempo, essas organizações se deparam internamente com o desafio de disciplinar e tirar o máximo de seus quadros. Trata-se, portanto, de um duplo e duro desafio: externo, de domínio da competição e das redes; e interno, de controle social; um desafio capaz de tirar o sono dos habitantes do mundo corporativo, uma guerra permanente. Enfim, um projeto para a democracia corporativa: pesadelos para todos!

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Um comentario para "Quando a democracia morre no portão da empresa"

  1. Lúcia Ribeiro disse:

    Particularmente, vivencio o tal pesadelo. Estou relendo “Rumo à Estação Finlândia”(Círculo do Livro, 1972, p.45) e uma citação de Renam chama-me à atenção: “a excelência moral […] sempre perde algo quando penetra na atividade prática, porque precisa adaptar-se à imperfeição do mundo.” Isso foi falado em meados dos anos 1800 e continua atual.

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