Por que nossos estádios estão vazios

Ao copiarem “modernização” adotada na Europa, cartolas brasileiros alcançaram estranha proeza. Elitizaram esporte e mantiveram clubes pobres

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Ao copiarem políticas de “modernização” excludente adotadas na Europa, cartolas brasileiros alcançaram estranha proeza. Elitizaram esporte e mantiveram clubes pobres

Por Irlan Simões

Curitiba, 10/12/2009. Estádio Couto Pereira: Torcedores do Coritiba, entre eles integrantes da torcida Império Alviverde, invadem gramado após término da partida que rebaixou do clube à Serie B do Campeonato Brasileiro. Confusão generalizada e ação desmedida da Policia Militar ocasionaram morte de um torcedor que não participou da invasão. O Coronel Ademar Cunha Sobrinho aponta que valor do ingresso, R$ 5, foi a causa do problema e sugere às presidências dos clubes uma medida que garanta “a elitização do público”.

São Paulo, 13/5/2010. Jornal Lance: J. Hawilla, proprietário da Traffic, um das maiores traders do futebol brasileiro, declara em entrevista: “A turma que vai à geral agora, ficará assistindo só na tevê. É gente que não consome nada, depreda e mata no metrô. Não interessa mais ao futebol. Dá orgulho ver o público pagar R$ 300 pelo ingresso”.

São Paulo, 24/5/2012. Programa Arena SporTV: Em debate sobre o alto preço pago pelos torcedores para frequentar estádios, o jornalista Alberto Helena Jr defende o que classificou como “nova tendência do futebol brasileiro”. Para ele o grande público, a massa, acompanhará aos jogos pela TV, enquanto o estádio terá a dinâmica de um teatro, com público elitizado.

Os casos acima – apenas alguns, entre muitos registrados nos últimos anos – ilustram uma lógica que vem ganhando força no futebol brasileiro. “Cartolas”, atores econômicos que veem no jogo uma fonte de lucros fáceis e comandantes das forças de segurança despreparados têm defendido, juntos, o aumento do preço dos ingressos. Sustentam que a exclusão dos torcedores mais pobres dos estádios seria a única saída viável para o esporte.

Os resultados impressionam. Em 30 de setembro, um domingo ensolarado, o Rio de Janeiro receberia mais uma vez um dos maiores clássicos do mundo. Entrariam em campo o líder do campeonato brasileiro, o Fluminense, um timaço com estrelas de nível internacional, e o seu arqui-rival, o Flamengo, embalado por uma sequência de bons resultados que animava os torcedores a uma arrancada.

O Fla-Flu tinha tudo para ser o grande jogo do ano. Tinha, não fosse um público pífio, de 23 mil torcedores que compareceram ao Engenhão. O velho torcedor rubro-negro ou tricolor provavelmente sentiu que aqueles tempos de plateias que superavam a marca de 100 mil torcedores – cena comum em dias de clássicos – foram-se para sempre.

Até o início da década de 1990, antes das sucessivas reformas que encolheram a capacidade do Maracanã, era possível ver públicos gigantescos, como o que levou mais de 112 mil pagantes em junho de 1995. Ainda em 2009, mais de 78 mil torcedores pagaram ingresso para ver o clássico no Maracanã. Acontece que de lá para cá o valor dos ingressos não parou de crescer.

Fetiche da modernização

É preciso relembrar o processo que arrastou – ou ergueu – o preço dos ingressos nos Brasil, a partir do início da década de 2000. Era o tempo da entrada de grandes investidores nos clubes, um momento que exigia do futebol brasileiro uma “modernização” elitista e excludente. Vislumbrando e idealizando modelos europeus, sem fazer a necessária diferenciação entre os parâmetros de consumo, emprego e renda, o futebol nacional entrou na aventura.

Um dos marcos desse processo foi o Atlético Paranaense. Desenvolvendo uma arrojada engenharia financeira, em contato com a multinacional de material esportivo Kyocera, construiu o que naquele tempo já se chamava de “arena multiuso”, o grande sonho de consumo dos clubes locais.

As arenas já eram realidade nas grandes competições europeias e o Brasil possuía um desejo quase obsessivo por estruturas daquele porte. O Atlético fez a sua. Foi campeão logo depois, quando os mesmos investidores montaram um elenco sem igual na história do clube e venceram o campeonato brasileiro pela primeira e única vez na vida. Era “o” clube, o exemplo que os atores econômicos do futebol brasileiro queriam difundir.

Durou pouco. Passada sua glória efêmera, o Atlético caiu para a segunda divisão e ainda não completou a estrutura da arquibancada da moderna arena, que os torcedores rivais hoje ironizam e qualificam como “semi-estádio”.

Ainda assim o clube marcou um período no qual quem investisse na “modernização” sentia-se no direito – apesar da revolta e boicote dos torcedores – de aumentar quanto pudesse o preço dos ingressos. Melhoramos a qualidade e o conforto da Arena da Baixada, a partir de 99, e entendemos que os preços teriam de ser equivalentes”, disse então Mário Petraglia, presidente do clube.

Opção pela elitização

O argumento espalhou-se pelo Brasil. O preço do ingresso deixou de ser uma questão de equilíbrio entre as contas do clube e as contas do torcedor. Tornou-se mera remuneração por um serviço. O próprio torcedor estava sendo ressignificado: agora, bastava que se comportasse como consumidor.

O que se viu, por todo o país, foi a criação de setores especiais, que se diferenciavam da arquibancada (então, ainda presente) por padrões diferenciados de conforto, serviço e, evidentemente, preço dos ingressos.

Foi uma mudança gradual. Primeiro, os setores especiais, com cadeiras de plástico, contrastavam com a aridez do cimento, às vezes custando o dobro. Aos poucos, foram se expandindo, até tomar a totalidade dos estádios. A fase seguinte seria a criação de “setores VIP”, com cadeiras mais confortáveis, agora contrastando com as de plástico… Entre 2004 e o início do campeionato brasileiro de 2012, a inflação oficial (IPCA) foi de 47,97%. Mas o preço dos ingressos aumentou, em média, três vezes mais – 152,06% –, segundo levantamento de O Estado de S.Paulo.

Os “setores populares” simplesmente deixaram de ser populares. Os melhores exemplos desse processo são os estádios São Januário (Vasco da Gama), Beira-Rio (Internacional), Olímpico (Grêmio, agora construindo novo estádio), Morumbi (São Paulo), Vila Belmiro (Santos), Palestra Itália (Palmeiras, em reforma), Barradão (Vitória) e Ilha do Retiro (Sport).

Ameaça ao futebol brasileiro

Que consequências trouxe a “modernização”, dez anos depois? Do ponto de vista social, os números são eloquentes. Entre 2007 e 2011, a média de público nos estádios, durante o campeonato brasileiro, caiu 16% – de 17,5 para 15 mil espectadores. Na disputa deste ano, nova queda abrupta: apenas 12,6 mil pessoas, em média, até a 33ª rodada. O “país do futebol” despencou para 17º do mundo, no ranking dos que mais atraem público a suas arenas. Está atrás dos grandes polos europeus (Alemanha, Inglaterra, Espanha e Itália); mas também de nações com tradição futebolística menos densa (México, Estados Unidos e China); de países com população 25 vezes menor que a nossa (Suíça); e até mesmo da segunda divisão do campeonato inglês…

Mas engana-se quem crê que copiar o futebol europeu teria, ao menos, colocado os clubes nacionais em paridade econômica com os do Velho Continente. A fórmula que alcançou resultados financeiros na Europa baseia-se em ingressos muito caros, para um público elitizado porém numeroso, devido a renda muito mais alta. Implantada mecanicamente ao Brasil, está esvaziando os estádios, sem oferecer aos clubes a mínima condição de se colocarem no patamar dos mais poderosos do mundo.

A tabela abaixo é eloquente. Ela mostra que a renda de estádio alcançada pelos clubes no campeonato brasileiro é 25 vezes inferior à arrecadação anual das equipes italianas, e 40 vezes menor que a dos times ingleses.

Quem assiste pela TV aos jogos dos campeonatos europeus e os compara com os nossos; ou sofre acompanhando as partidas da seleção brasileira tem a sensação desconfortável de que também regredimos do ponto de vista técnico. Para explicar este fenômeno, é preciso investigar múltiplas causas. Mas a elitização é, decerto, um fator destacado. Ao afastar dos estádios quem sempre deu vida a eles; ao transferir para o esporte a lógica de segregação social, a “modernização” pode estar matando a mágica que fez do futebol brasileiro, no século passado, um ícone da cultura nacional e uma expressão de arte apreciada em todo o mundo

 

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14 comentários para "Por que nossos estádios estão vazios"

  1. Matheus Braga disse:

    Pensamento imediatista e simplista esse seu, Dionisio. Pelo seguinte. Você está fazendo a conta de UM jogo de R$40,00. E os outros jogos da temporada? Já colocou no papel? Você está pensando em UMA pessoa apenas. E os pais que levam seu(s) filho(s) ao estádio? Ou deve-se proibir a ida da família?
    Me lembro como se fosse hoje, do meu pai me levando ao Palestra Italia em 93, então com 6 anos de idade, e a alegria que foi. A relação entre pai e filho que o futebol faz aproximar, desde a ida ao estádio até à própria prática do esporte em campeonatos escolares, de clube, de várzea..
    O futebol brasileiro perdeu a essência. E acredito que não tem mais volta, a não ser por um milagre. Futebol bem jogado, estádio lotado, festa, isso acabou. É passado, infelizmente!

  2. pwagnerbr disse:

    Acredito que o problema é muito mais profundo e as origens são bem diferentes das mencionadas pelo autor do texto. Ele nem toca, por exemplo, na questão das cotas de televisão; no monopólio exercido por um canal específico; e deixa de se aprofundar em um item importante da tabela que ele utilizou para ilustrar a matéria: o salário mínimo nacional. Apenas para ilustrar, para a grande maioria dos clubes, o estádio já está cheio de torcedores antes mesmo do campeonato começar. Ou seja, as cotas de tv funcionam como estádios cheios. O que vier depois é lucro.
    Apenas um detalhe que deve ter passado despercebido: Kyocera não é marca de material esportivo, como mencionado no texto. Ela produz, entre outras coisas, impressoras e copiadoras.

  3. Luiz Bello disse:

    Ótimo texto, Irlam. Qual (is) a(s) fonte(s) dos números citados?

  4. Bem apropriado mostrar muitos contextos e facetas the "máquina" do futebol brasileiro. Planejamento avarento aliado a design "meia-boca" leva ao fracasso. Quando ainda coloca outras questões como a não-existência de auditoria nos clubes que demonstraria o "que todo mundo sabe," que há corrupção capilarizada nesse negócio que, para os grandes, é um grande negócio.
    Exemplos como o Atlético que citaste e o processo eficiente de um clube como o São Paulo, mostra que soluções existem e a tecnologia social de gestão gera resultados palpáveis.
    [Ótimo artigo, na tabela o salário mínimo mensal do México deveria ser 76 Euros, não 1.]

  5. Dionisio Silva disse:

    A argumentação apresentada é muito fraca. A elevação do preços dos ingressos nos estádios nem de longe é causa da queda da média de público do futebol brasileiro. Tomando como exemplo o Fla x Flu de setembro último, mencionado pelo articulista: vc acredita mesmo que não haja 40 mil torcedores desses times com R$ 40,00 reais para encher o Engenhão?
    A insegurança fora dos estádios, a péssima qualidade do transporte, as torcidas organizadas violentas, a opção de assistir os jogos pela TV (que pagam aos clubes, claro), o mau futebol que reina em campo, outras opções de lazer, são fatores muito mais relevantes para afastar os torcedores.
    Há tempos, dizia-se que no Brasil o futebol era o ópio do povo e que, por querer manter o povo alienado, a elite mantinha o preço dos ingressos em níveis extremamente baixos. Agora, que o povo não parece mais tão interessado em futebol, reclama-se também. Assim fica difícil.

  6. Entendo seu ponto de vista. Assistir a um jogo 16h em Rio Preto não deve ser fácil. Cobrir o estádio encarece o ingresso, pelo menos essa é a linha de pensamento dos dirigentes do Brasil. Estádio cheio pra eles é prejuízo, pq a PM vai ter de trabalhar mais. Ainda acho que arquibancada é cimento com degrau, exatamente como é no Pacaembu, Canindé e outros. Cadeirinha atrapalha mais que ajuda. Devíamos ter, então, a arquibancada – pro povo ficar sentado – e a velha geral, pra quem quer ficar em pé. E preços populares, por favor!

  7. Não é bem assim. Sou de uma cidade que tem 2 times na segunda divisão do campeonato paulista. Nenhum deles lota estádio por amor à camisa.
    Além de ver um péssimo futebol, o torcedor é obrigado a ficar no sol (no caso da minha cidade, escaldante) tomar refrigerante vagabundo a 4 paus o copo e pagar 20 paus no ingresso. Isso pra ver jogo da segunda divisão.
    Duvido muito que o Barcelona ou o Real Madri encheriam um estádio se os times fossem ruins.

  8. conforto no estádio, pra mim, não faz o minimo sentido da forma como é apresentada. Grande parte (se não a maioria) do torcedor de arquibancada quer ficar em pé, pulando e gritando e os clubes não vêem isso. A FIFA estuda até uma forma de banir o torcedor que assiste aos jogos em pé! O conforto que espero é um banheiro humanamente utilzável, uma cerveja gelada a preço de comércio, um local onde eu possa estacionar meu carro e/ou um meio de transporte descende que me leve até o local do jogo e o direito de me expressar na arquibancada, seja gritando, seja xingando ou mesmo quieto. Não quero cadeiras, não quero cobertura, não quero artistas, quero apenas o futebol.
    Os clubes precisam aprender também a tratar o torcedor como torcedor, não como cliente. Cliente compra uma camisa numa loja, veste ela e coloca pra lavar. Quando ela fica pequena ou velha, se desfaz. O torcedor nasce, cresce, vive, se emociona e morre com o time. Ele vai acompanhar o time sempre e só espera que o time corresponda jogando um bom futebol.

  9. Exatamente.
    Hoje até o torcedor mais humilde acha um absurdo além de pagar um preço alto pelo ingresso, sentar-se numa arquibancada de cimento, sob o sol escaldante (ou chuva) para assistir a uma partida recheada de pernas de pau.
    O cara prefere gastar a grana com outra coisa.
    Se os estádios fosse confortáveis, houvesse o mínimo de organização e os jogadores promovessem um espetáculo, creio que os estádios estariam mais cheios.

  10. Paulo Neto disse:

    Caro Irlan,
    Concordo em muito no que diz, mas discordo the forma. Isso porque tem alguns aspectos que não são tocados para além dos aumentos dos ingressos. Primeiro, organização e fidelização dos torcedores, isso é algo que ocorre há tempos na Europa e em países que você coloca com média maior que a nossa e que no Brasil ainda engatinha, com alguns exemplos; Corinthians, Internacional e Grêmio. Outro fator que não entra é que o cenário do entretenimento mudou muito no Brasil do inicio dos anos 2000 para cá, ou seja, por muito tempo em um dia de Domingo o Futebol era, em muitos casos, o único entretenimento de massas, hoje isso se multiplicou e com isso as pessoas tem opção. Isso se casa com a questão anterior, falta de organização e fidelização do torcedor para ir ao Estádio. Se casar essas três coisas com o aumento dos ingressos verá que o problema é mais complexo.

  11. Sergio Domingues disse:

    Muito bom, Irlan!

  12. Pepi disse:

    Ta ficando mestre, hein sacaninha?!
    Simplesmente sensacional! Parabéns pelo texto!
    Espero que esse possa ser divulgado pelos 4 cantos do país!
    Muita gente precisa ler aquilo que a Tv Bobo não mostra!

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