Dossiê: a Grécia ensaia ser rebelde

Quatro textos sobre país que assombra oligarquia financeira. No primeiro, raio-X da eleição que pode mudar futuro da União Europeia

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Por Antonio Barbosa Filho, correspondente na Europa

DELFT (Holanda) – Os meios políticos e financeiros da Europa respiram ao ritmo das pesquisas pré-eleitorais na Grécia. Prendem o fôlego quando as preferências favorecem a coalizão de esquerda Syriza. Voltam a respirar quando os levantamentos dão o favoritismo para a centro-diretista Nova Democracia, seguida do centro-esquerdista Pasok – os dois grandes partidos que desejam o cumprimento do doloroso acordo de “ajuda” ao país pela União Europeia, Banco Central Europeu e FMI, com o consequente corte de direitos sociais e serviços públicos.

Cinco pesquisas realizadas no domingo, 26 de maio, davam vantagem à Nova Democracia, e com isso as bolsas europeias tiveram ligeira euforia. Porém, as diferenças apontadas são muito estreitas para tranquilizar os “mercados” e os políticos responsáveis pela gestão da crise. Segundo os cinco institutos indicaram em diferentes levantamentos, a Nova Democracia teria, caso a eleição fosse agora, entre 25.6 e 27.7% dos votos; o Syriza ficaria entre 20.1 e 26%. Ou seja, muita coisa pode acontecer nas três semanas que restam de campanha até o pleito de 17 de junho.

A conservadora Nova Democracia usa a tática de assustar o eleitorado grego: se o novo governo romper unilateralmente os acordos com a troika “A Grécia ficará muitos anos isolada… Não haverá comida, nem remédios, nem combustíveis. Vamos conviver com frequentes cortes de energia”, ameaça o líder Antonio Samaras. A Syriza responde que a manutenção dos termos draconianos dos acordos é que traz a miséria, o desemprego, cortes nas aposentadorias e salários, degradação dos serviços públicos e fechamento de empresas. Grupo que mais cresceu nas eleições de 6 de maio, a Syriza acha que o país deve continuar no euro (82% dos gregos pensam o mesmo, variando as opiniões sobre os custos toleráveis desta opção), mas deve “negociar duro” com a UE para revisar os termos da mal-chamada “austeridade”.

O eleitorado grego não sofre apenas as pressões dos partidos que defendem o cumprimento dos compromissos assumidos com a troika – o que significa arcar com sacrifícios que já duram dois anos e não têm prazo para terminar. Há também as pressões e humilhações que partem do resto da Europa, especialmente da Alemanha, país mais rico e cuja população considera que já “ajudou” demais a Grécia.

O governo da primeira-ministra Angela Merkel não deixa escapar as oportunidades de cobrar da Grécia a obediência às implacáveis regras impostas pela troika. Num dia, o ministro do interior afirma que os alemães “não estamos dispostos a por mais dinheiro num saco sem fundo”. Noutro, a imprensa obtém um plano “secreto” de Merkel para aplicar na Grécia o mesmo programa que foi imposto à Alemanha Oriental na reunificação dos anos 90: privatização de tudo que seja estatal, menor proteção ao trabalhador e abertura total ao investidor estrangeiro por meio de isenções e facilidades de todo tipo. O que este plano esconde é que ao mesmo tempo em que se aplicavam tais medidas de liberalização da economia, na parte Leste da Alemanha, a parte Oeste destinava recursos a fundo perdido sob a forma de um “imposto de solidariedade” pago pela metade mais rica. Foi isso que permitiu a elevação do padrão de vida e da economia ex-comunista aos níveis da Alemanha capitalista. A unificação custou caro para ambos os lados do antigo Muro.

Estaria a Alemanha de hoje disposta a enviar recursos para a Grécia e outros países endividados da Europa, como fez com a sua metade mais pobre? É claro que não, segundo repete o governo Merkel e constatam dezenas de pesquisas de opinião pública. Portanto, do seu “plano” para salvar a Grécia só restam as medidas punitivas e liberalizantes – e a dose que já foi aplicada levou  à redução da economia grega em 20%, só no último ano.

Um artigo na revista inglesa The Observer, de 27 de maio último, resume a questão: “A Alemanha esteve tranquilamente auferindo lucros de sua participação na moeda-comum na última década, e agora terá que decidir se vale a pena pagar um ‘imposto-solidariedade’ em escala continental. Com mais três semanas até a eleição na Grécia, e com algumas pesquisas de opinião sugerindo que a anti-austeridade Syriza pode vencer no voto popular, é tempo de decisão em Berlim, tanto quanto em Atenas”.

A Alemanha não pode esquecer que sua economia é pujante porque teve o mercado europeu aberto às suas exportações. Caso os países em crise (como Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha e, quem sabe, até a Itália) deixassem o euro e voltassem a suas moedas, estas seriam muito desvalorizadas em relação à moeda-única. Com isso, esses países teriam muito menos dinheiro para importar bens alemães. Ao mesmo tempo, poderiam exportar seus produtos a um preço menor, concorrendo com a Alemanha em mercados importantes como os Estados Unidos e os países emergentes da Ásia. Em síntese: a arrogância da senhora Merkel implica grandes riscos para sua hoje rica Alemanha, numa eventual Europa esvaziada de alguns parceiros no euro.

Às pressões da Alemanha, somam-se as do FMI, cuja diretora-geral teve que pedir desculpas pelo tom agressivo que usou em recente entrevista ao Guardian, de Londres, quando afirmou  que os gregos podem ajudar a si mesmos “se pagarem seus impostos”. Perguntada sobre como vê o sofrimento de mães gregas diante do sacrifício de seus filhos e a falta de medicamentos de uso constante nos hospitais, a burocrata respondeu: “Penso mais nas crianças de uma escola numa pequena aldeia da Nigéria, que têm duas horas de aula por dia, precisam dividir uma carteira escolar entre três alunos, e  lutam para obter Educação. Eu as tenho na minha mente o tempo todo. Porque elas precisam muito mais de ajuda do que o povo de Atenas”.

Depois de dizer que os gregos não devem esperar “simpatia” do FMI, e que na Grécia há muita gente tentando se evadir dos impostos, Lagarde recebeu inúmeras respostas indignadas pelo Facebook e redes sociais. Uma delas indagava: “Já passou pela sua cabeça que (não pagamos impostos porque) simplesmente não temos mais dinheiro?” A arrecadação de impostos na Grécia caiu em um terço no período de apenas um ano.

A infeliz declaração da diretora-geral do FMI mereceu outra resposta dura do líder da Syriza, Alexis Tsipras: “A última coisa que buscamos para a Grécia é a simpatia do FMI. Os trabalhadores gregos pagam impostos insuportáveis. Sobre a sonegação fiscal, ela deveria pedir ao Pasok e à Nova Democracia que lhe explicassem porque não tocaram nas grandes fortunas, e apenas arrocharam os trabalhadores mais simples por dois anos”.

Antonio Barbosa Filho é jornalista e escritor, autor de A Bolívia de Evo Morales e A Imprensa x Lula – golpe ou sangramento? (All Print Editora). Em viagem pela Europa, acompanha as consequências da crise financeira pós-2008 e da onda corte de direitos sociais (‘políticas de austeridade’) iniciada em 2010

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