O papel rebelde da utopia

Filme de Sílvio Tendler retoma Bloch, lembra que sociedades transformam-se e “astuciar” o mundo é viver agora futuro que desejamos

.

Por Arlindenor Pedro*

Assisti Utopia e Barbárie, filme do Silvio Tendler, em uma noite de dezembro de 2011 no acampamento do Ocupa Rio, em plena Cinelândia. Naquele cenário, sentado na calçada com jovens idealistas, olhando as imagens desse importante documentário, não pude deixar de recordar outros momentos que passei naquela praça.

Lembrei-me que foi ali, na porta do Clube Militar, na tarde do dia 31 de marco de 1964, que presenciei estarrecido as tropas da Policia do Exército disparar contra o povo desarmado que defendia o governo João Goulart. Com apenas 17 anos vi corpos abatidos ao meu lado pelo Exército do meu país, e, embora tenha mantido a minha vida, naquela tarde perdi a minha liberdade.

Mais tarde, na mesma Cinelândia, emocionado, cansado pelos anos de luta, assisti com a multidão, através do som de um trio elétrico, a sessão no Congresso na noite do dia 28 de abril de 1984 – momento da votação da Emenda das diretas Já. Embora derrotada, ela deu cheque- mate na ditadura, que ficou com seus dias contados. Recuperávamos então a liberdade política perdida!

A obra de Silvio Tendler nos remete àqueles momentos. Trata-se de um intenso trabalho de pesquisa e coleta de som e imagem com o objetivo de nos lembrar a importância das utopias no desenvolvimento de um povo, na suplantação dos estados de barbárie que por vezes se impõem, oprimindo a sociedade. Segundo o diretor, foram dezenove anos de trabalho e quinze países visitados, resultando no olhar diverso de cerca de 50 personagens. Por meio deles, e a partir do vendaval que varreu o mundo na década de 1960, o filme reconstrói o pós-II Grande Guerra. Trata-se de rever essas utopias e perguntar: o que resultou disso tudo?

Depoimentos de políticos, poetas, escritores, militares, jornalistas, numa variada gama de imagens feitas no Brasil e exterior, nos colocam frente a acontecimentos que tiveram importância na formação do presente. As guerras da Indochina, a guerra da independência na Argélia, o assassinato de Patrice Mulumba. Personagens como o General Giap, Ho Chi Mihm, Lyndon Johnson, presentes na mídia daquela época, retornam para avivar nossa memória e informar os mais novos. O diretor ouviu sobreviventes do genocídio de Hiroxima e Nagasaki, dos campos de extermínio nazista da II Guerra e moradores de um kibutz em Israel, último vestígio da utopia sionista socialista do início do século passado.

No que se refere ao Brasil, é interessante constatar como alguns dos que viveram a luta contra a ditadura militar sentiam aqueles momentos. Dilma Rousseff, que ainda não era presidente ao depor para o filme, deixa claro a falta de liberdades políticas foi o que empurrou sua geração para a oposição e a clandestinidade. O poeta Thiago de Melo fala sobre as divergências que tinha com seus companheiros que pregavam a luta armada como forma de combater o regime. Toda uma geração que, embora seguindo por caminhos paralelos, levantou-se contra a barbárie e apostava na utopia de um Brasil solidário, diferente. Na oposição aos militares e em busca de liberdade, uniram-se todos, num sentimento comum que se materializou com a Constituição de 88.

Em um dos momentos marcante do documentário o diretor nos leva ao Vietnã atual, várias gerações após a guerra. Vemos país que adota a economia de mercado e de consumo, tentando seguir os mesmos caminhos da China. Fica no ar a pergunta: seria esse o final da história? O sentido da guerra do Vietnã se resumiria à luta pela afirmação nacional e independência, diante das forças invasoras – francesas e depois americanas? As utopias das revoluções chinesa soviética teriam, por diferentes caminhos, desembocado no mesmo final: os parâmetros de mercado do mundo globalizado?

O cientista político norte-americano Francis Fukuyama desenvolveu a tese de que o liberalismo político e econômico saiu vitorioso da batalha final contra o socialismo e o comunismo. Mas, seria mesmo essa a batalha final da humanidade? Haveria, aliás, uma “batalha final”?

Robert Kurz, e seus companheiros da revista alemã Exit, não pensam assim. Em seu livro O colapso da Modernização, ele refuta os que vem na derrocada dos regimes socialistas a vitória do capitalismo. Segundo seu ponto de vista, o que está em crise é um sistema mais amplo – do qual os países “socialistas” faziam parte; e pode surgir daí um desastre de proporções catastróficas. Para Kurz a crise inicia-se nos países do “terceiro mundo”, avança para leste europeu e hoje já se instala profundamente nas áreas do centro capitalista.

Na verdade, ao derrotar as utopias modernas – como socialismo, comunismo, fascismo, nazismo, sionismo, maoísmo – a “visão de mundo” da burguesia liberal, apenas abriu caminho para uma nova utopia. Trata-se o pós capitalismo, um mundo onde novas relações entre os seres humanos, não mais intermediadas pelas mercadorias e sua própria imagem, substituirão a apropriação do trabalho abstrato e a prevalência do valor de troca sobre o valor de uso.

Muitos duvidam que a humanidade possa viver fora da lógica do mercado e da sociedade do consumo. Veem como utópicas – aqui, no sentindo de fantasiosas e impossíveis – as propostas de sociedades além desses parâmetros. A mercadoria seria eterna; e o trabalho, a essência da natureza humana, constituindo-se inclusive no elemento que nos diferenciaria dos outros primatas, propiciando a nossa evolução. Estaríamos condenados, pois, a viver dentro de um sistema que reifica nossas relações e nos afasta cada vez mais da sociabilidade e equilíbrio, levando-nos à barbárie.

Neste caso, a humanidade viveria uma espécie de beco-sem-saída, visto que a natureza predatória do mercado põe em risco a própria existência da espécie, tal o poder de extermínio acumulado por um tipo de conhecimento tecnológico que opõe os mercados às sociedades e à natureza.

Anselm Jappe, o pensador alemão que escreveu Debord, conta ter descoberto, em suas pesquisas no Canadá, um povo indígena que mantém um costume para nós no mínimo inusitado. Se um indivíduo dessa comunidade sentir-se ofendido por outro, seja qual for o motivo, fica na obrigação de presenteá-lo com algo, para demonstrar que sentiu a ofensa. Por sua vez, o indivíduo que recebeu o presente adquire o dever de retribuir com outro presente, de valor de troca ainda maior. E isto se faz sucessivamente, até que um dos dois desista da “gentileza”, ou simplesmente vá à falência. Vemos aqui uma forma de encarar o valor do presente, e a própria relação entre os indivíduos, totalmente distinta da nossa. Talvez isso sugira a necessidade de reciclar por completo nossos comportamentos e modo de encarar os nossos semelhantes. Não é sem sentido que muitos filósofos na atualidade voltaram-se para o estudo do modo de vida das comunidades gregas do período homérico, quando, pensa-se, a humanidade perdeu o passo do homem livre e total da antiguidade

Dada sua incongruência com a ordem estabelecida, as utopias sempre tiveram um relevante papel como motor do processo histórico – isto é, da busca por mudanças. Estariam elas no campo das pulsões, conceito presente nas obras do pensador alemão Ernst Bloch – especialmente no seu livro Princípio Esperança? Ali, ele nos propõe a existência de um nexo entre as potencialidades-ainda-não-manifestas e a atividade criadora da “consciência-antecipadora”. Ou seja, sugere que podemos equacionar problemas atuais em sintonia com linhas que antecipam o futuro. O conceito blochiano de superação do que-já-se-efetivou pela esperança do que ainda-não-veio-a-ser, torna-se um elemento importante para entendermos as utopias no desenvolvimento das sociedades. O ainda-não-ser, categoria fundamental na filosofia blochiana da práxis, baseia-se nas potencialidades imanentes do ser que ainda não foram exteriorizadas, mas que constituem uma força dinâmica que projeta o ente para o futuro. Imaginando, os sujeitos “astuciam” o mundo. O futuro deixa de ser insondável para vincular-se à realidade como expectativa de libertação e desalienação. No presente, o individuo vive o futuro, por meio de ações e comportamentos – isto é, nas utopias.

Em diversos momentos vivi isto nas ruas, no pós-64. Foi também o que vi na vida-vivida do Ocupa Rio, naquela noite, na Cinelândia, ao assistir e refletir sobre a obra de Silvio Tendler. As multidões que tomam as ruas em todo o mundo, no Brasil e na nossa Praça da Utopia – a Cinelândia — o fazem porque recusam-se em viver o presente, projetando-se para o futuro: astuciando o universo.

O diretor considera sua obra inacabada. É fato, pois, ao contrário do que pensa Fukuiama, nunca existirá o fim da história: as ideologias e utopias estarão sempre se chocando. Fazemos parte de um universo em constante e acelerada expansão, onde sempre existirão o infinito e o improvável. Eles alimentarão nossas almas, nossa arte, fazendo de nós os seres mais livres da existência. O filme de Silvio Tendler existe para isto.

Serra da Mantiqueira, Janeiro de 2012

* Arlindenor Pedro é professor de História e especialista em Projetos Educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, atualmente é produtor de flores tropicais na região das Agulhas Negras.

email: [email protected]

Arlindenor.wordpress.com

Leia Também:

Um comentario para "O papel rebelde da utopia"

  1. Um pequeno detalhe: Jappe não descobriu o Potlatch (prática dos indios citada no texto), Marcel Mauss já havia escrito e estudado a prática, sem contar Guy Debord e o situacionistas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *