Cinema dentro da história

Leni Riefenstahl ajudou a propagandear o nazismo com seus filmes—mas deve ser responsabilizada pelos crimes cometidos em nome de Hitler?

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Por Arlindenor Pedro*

Todos aqueles que hoje assistem ao documentário O Triunfo da Vontade, da cineasta alemã Leni Riefenstahl, dificilmente deixarão de refletir sob seus diversos aspectos subjacentes. E esta é a sua força, pois estamos diante de uma obra perene, que não se esgota no processo histórico. Pelo contrário: trata-se de um valioso instrumento de reflexão sobre o nosso tempo — e também de parâmetro para tempos vindouros.

Quando Adolf Hitler pediu à jovem cineasta dirigisse um documentário sobre o VI Congresso do Partido Nacional-Socialista, na cidade de Nuremberg, entre os dias 4 e 10 de setembro de 1934, esperava uma obra grandiosa, que espelhasse política e esteticamente, para Alemanha e o mundo, as ideias do nazismo. Após terem conquistado o poder político no país, era a primeira vez que os nazistas realizavam um Congresso nacional.

Na época, Leni Riefenstahl já era uma conhecida e prestigiosa atriz do cinema alemão. Começou sua carreira como bailarina, mas desenvolveu-se como atriz em belos filmes ambientados nos Alpes. Invariavelmente, as películas retratavam a vitória da tenacidade humana sob a adversidade da natureza, destacando-se a força física, a beleza e o caráter do povo alemão nas figuras de montanheses e alpinistas.

Talvez tenham sido estas característcias que fizeram com que o próprio Fuhrer, após ser apresentado a Leni por Joseph Goebbels, se encantasse com o talento da cineasta, incumbindo-lhe da realização do documentário. Para que pudesse comprir com sua nobre tarefa, Hitler abriu-lhe as portas da estrutura do Estado, a despeito da oposição da maioria da cúpula do partido. Assim, Leni recebeu todos os recursos necessários. O resultado foi a criação do mais importante documentário de propaganda política de todos os tempos, até hoje admirado pelo seu valor técnico e por trazer até os dias atuais a “visão de mundo” dos alemães no pós-guerra.

Escolhido pelo próprio Fuhrer, o título nietzschiano, Der Triumph des Willens, busca refletir a tarefa a que se propôs o povo alemão: superar todas as barreiras e levar a cabo a utopia da construção de um mundo nacional socialista. O documentário, como numa obra de grandiosidade wagneriana, supervisionado em todos os detalhes pelo seu idealizador, realça, através de 12 grandes quadros, a relação do povo alemão — ali retratado pelos delegados do VI Congresso — com o depositário de suas esperanças: Adolf Hitler.

Numa narrativa cinematográfica em que não existe texto, as imagens falam por si, através de planos que nos lembram o ápice dos triunfos das legiões romanas, desfilando massas de jovens retratados dentro da estética de fisiocultura grega, rendendo homenagens ao seu líder supremo. Numa integração entre os hinos nazistas e canções tradicionais, o documentário só quebra o seu impressionante ritmo para que possamos ver e ouvir o desempenho oratório do Fuhrer, em discursos variados, onde formula suas concepções políticas, oriundas da obra máxima do ideário nacional socialista: Mein Kampf (Minha Luta), escrito por ele na prisão, após o fracasso do levante de Munique.

Leni Riefenstahl soube traduzir em linguagem cinematográfica as duas vertentes poderosas que se ocultavam por detrás da imagem de Hitler, e que eram muito eficazes junto ao público alemão. A primeira delas vinha da tradição cristã, que, tanto nos Evangelhos como no Livro do Apocalipse, deposita enormes esperanças na chegada de um salvador, de um messias. Num contexto de miséria e humilhação, o líder nazista se encaixava perfeitamente nesse papel.

A outra vertente advinha do herói da mitologia teutônica, Siegfried, o lendário guerreiro que, acompanhado de mil nibelungos, depois de incríveis aventuras e feitos extraordinários, mata o dragão às margens do Rio Reno, livrando os alemães da desgraça. O Fuhrer era o Partido Nacional-Socialista, ele era a Alemanha: sua tarefa era conduzir o povo. Hitler era invencível, como Siegfried, e somente ele reergueria a Alemanha e levaria os alemães a liderar a reorganização do mundo.

Um dos maiores méritos dos documentários de Leni Riefenstahl (ela realizou inúmeros para o terceiro Reich, e dentre eles se destaca o genial Olimpia, que encantou as plateias com as imagens altamente inovadoras dos 11° Jogos Olímpicos, realizados na Alemanha) é trazer até nós, na atualidade, uma narrativa essencialmente nazista sobre a Alemanha. São imagens e discursos feitos pelos próprios lideres nazistas — e não através das lentes e interpretações dos vencedores da II Grande Guerra, que satanizaram o Nacional-Socialismo alemão e seus líderes, passando-nos uma versão superficial e maniqueísta da história, onde o bem venceu o mal.

Assim como o italiano Roberto Rossellini, que trabalhou para o fascismo, e Serguei Eisenstein, com seus geniais filmes para o governo Soviético, Leni, como a maioria do povo alemão, acreditou e viveu uma utopia. Foi presa após a guerra e, embora tenha sido libertada pelos Aliados — pois ficou comprovado que nunca tinha participado das decisões políticas do regime —, até a sua morte, em 2003, sofreu com a discriminação por ter realizado filmes para o Estado nazista.

Sua vida e obra nos remetem ao debate e reflexão sobre o papel dos artistas, intelectuais e mesmo cientistas perante as utopias e seus engajamentos ideológicos. Remete-nos também à reflexão do que é Arte e Ciência, e qual o seu papel na história.

É um debate difícil, ainda mais se lembrarmos que, passada a ameaça nazista, tanto EUA quanto URSS não tiveram nenhum pudor em contratar os cientistas alemães que desenvolviam o programa nuclear do Fuhrer. Os pesquisadores receberam a cidadania americana ou soviética e em nenhum momento questionou-se seus papéis junto ao terceiro Reich. Mesmo o conceito do que é bem e mal fica abalado, quando vemos o Estado de Israel patrocinar o mesmo tipo de prática desumana e xenófoba que um dia foi utilizado contra os judeus.

Klaus Mann, filho mais velho de Thomas Mann, escreveu o conhecido romance Mephisto, em que retrata a vida de Gustaf Grundgens, um ator alemão que foi casado com sua irmã, Erika Mann, e que, embora mantivesse estreitas relações com comunistas alemães, permaneceu na Alemanha após a ascensão de Adolf Hitler. Gustaf tornou-se uma referência cultural no país ao interpretar o papel de Mefisto na peça Fausto, de Goethe. Os nazistas gostavam muito da encenação, e o romance de Klaus retrata o lado dúbio do personagem, que, segundo ele, vendeu a alma ao regime. Mephisto se defende e diz que ele é um ator e não pode viver sem representar.

Tal situação retrata o dilema em que vivem os artistas, intelectuais, cientistas etc. quando estão submetidos a regimes como o nazista e se dão conta que seu trabalho é utilizado pelo Estados Militaristas para fins que não compartilham.

Guy Debord e seus amigos da Internacional Situacionista propugnavam que a arte, desde que exista, passa a não ter mais propriedade e serve a todos os propósitos. Dessa forma, aplicavam a técnica do detournement (colagem) sobre as obras de outros artistas e as montavam dentro de suas obras, muitas vezes mudando completamente o seu sentido, para fins revolucionários. Vemos, por exemplo, muitos filmes de Debord em que o texto transforma o sentido das imagens extraídas de películas as mais diversas.

Só poderemos então compreender aos filmes de Leni Riefenstahl contextualizando-os dentro do espírito em que foram produzidos, na Alemanha nazista, onde praticamente todos acreditavam na utopia propugnada pelo Fuhrer. Afinal, Hitler chegou ao poder pelo voto da maioria esmagadora do povo alemão.

(*) Arlindenor Pedro é professor de história e Especialista em Projetos Educacionais. Anistiado pela sua oposição ao Regime Militar, atualmente é produtor de flores tropicais na Região das Agulhas Negras. arlindenor@ newageconsultores.com.br

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