Cinema fora de época

O império da razão, defendido por Rossellini, acabou construindo um mundo onde a arte raramente vence as barreiras da mercadoria

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Por Arlindenor Pedro

Os alemães ainda não tinham retirado suas tropas da Itália e mesmo assim Roberto Rossellini filmava pelo país sua obra mais eloquente: Roma, Cidade Aberta. De forma clandestina, imagens eram geradas para este filme, que deu o primeiro passo para uma das escolas de cinema mais importantes do pós-guerra: o neo realismo italiano, que, após anos de uma cinematografia de propaganda da sociedade fascista, fez um contraponto ao seu moralismo positivista, se propugnando em mostrar, através da força das imagens e dos roteiros, a realidade nos seus mínimos detalhes, decantando-a, retirando dela o seu glamour, o seu luxo, deixando-a desnuda.

Influenciados pelo realismo poético francês de antes da guerra, que colocara o trabalho dos roteiristas num primeiro plano — evidentemente calcado nas novas características técnicas do cinema, onde o som se mesclava com as imagens –, diretores geniais como Rossellini, Luchino Visconti e Vitorio De Sicca criaram verdadeiras obras primas, onde o realismo casava-se com elementos de ficção, em alguns momentos aproximando-se mesmo do filme documentário, mas, diferentemente dele, desenvolvendo uma obra poética intensa, com atores amadores ou mesmo pessoas do povo interpretando personagens numa performance dramática da força da vida-vivida.

Roma, Cidade Aberta é um clássico e, sem dúvidas, inicia uma escola que até hoje influencia muitas formas de cinema, como, por exemplo, o atual cinema iraniano, tão aclamado pela critica. Vários movimentos cinematográficos beberam na sua visão estética e na forma de fazer cinema intuitivo, o cinema de autor — o cinema a serviço de uma coletividade. A junção de populares italianos com o clima opressivo da cidade ocupada; os conflitos dos personagens e suas escolhas perante os problemas que se apresentam — de viver ou não viver ou mesmo de como continuar vivendo e convivendo com a traição; a questão da entrega da vida no acreditar de uma causa, não importando questões ideológicas, mas puramente no sentimento de liberdade, são elementos próprios da natureza humana, que se repetem no dia a dia, mas certamente são acentuados em períodos de crise, como o da guerra. Isso cativou cineastas posteriores, como na Nouvelle Vague francesa e o Cinema Novo no Brasil.

Rossellini, antes da guerra, tinha filmado para o Estado fascista, mas soube romper com ele após o desencantamento com seu determinismo racionalista que impedia o fluxo da criação. Tendo participado com outros jovens cineastas, como Visconti, De Sanctis e Antoniani da Revista Cinema, que era dirigida pelo filho do il Duce, Vitorio Mussolini, um amante do cinema, viveu o ambiente inquieto da cultura italiana dos anos 1938 e 40. De certa forma, contribuiu ali para o desmoronamento interno das certezas do regime fascista. Durante o governo de Mussolini, fez vários filmes, como, por exemplo, Un Pilota Retorna, com roteiro de Michelangelo Antonioni. Já ali desenvolve a sua concepção própria de cinema, ao tratar a guerra não só do ponto de vista do herói militar, e sim como uma situação impar no processo histórico, que envolve a todos — combatentes e não combatentes, crianças, velhos, num drama de natureza abrangente.

Nos anos 60 ele faz uma nova ruptura: corajosamente, no auge de sua carreira, resolve abandonar a própria estrutura cinematográfica, observando que o cinema italiano e europeu tinha se tornado prisioneiro da lógica de mercado, fazendo concessões que implicavam na morte do processo criativo. Afasta-se do cinema que, para ele, tinha enveredado pelos caminhos da ficção concentrada no individuo, na visão do ator como produto comercial de identificação do público e no argumento como base do filme.

Ele via o cinema como outros meios audiovisuais, essencialmente como uma correia de transmissão para suas ideias. E, nesse sentido, os filmes que fazia tinham um componente forte de destruição de todo o sistema tradicional da dramaturgia. Neles, a vida era apresentada como uma longa espera por uma revelação que poderia mudar o rumo dos personagens. A estética servia ao que se queria dizer. Não se enquadrava, pois, ao vedetismo de fora das lentes, onde os festivais e o luxo dos astros se sobrepunham à própria arte cinematográfica — e que passaram a ser um elemento determinante do cinema italiano e europeu.

Apaixona-se, então pela TV, essa nova mídia que crescera em todo o mundo apoiada essencialmente, até aquele momento, no Estado, e não ainda na propriedade privada, falando para milhões de pessoas, e viu nela a oportunidade de desenvolver um novo tipo de cinema. Para ele, a arte era, antes de tudo, essencialmente um meio de comunicação que para chegar aos seus fins deveria renunciar aos conceitos estéticos da tradição romântica e colocar-se a serviço do homem. A indústria cinematográfica italiana não iria por esses caminhos. Nem mesmo o cinema em outros países, como o cinema americano, que fez a ele várias propostas, o seduziram. Ele não queria ser aprisionado naquilo que chamava “prisão dourada”. O cinema estava morto! Iria utilizar a TV para suas utopias. Surge então o conceito rosselliniano de cinema didático.

Nesta fase, procura colocar em prática o projeto de educar o público de telespectadores com filmes sobre a história da humanidade, principalmente no seu processo de aprendizagem histórica. Seus filmes mostrarão o conflito central entre a filosofia, religião e ciência. Através desse conflito, mostraria pelas figuras de pensadores que viveram essa problemática — filósofos , artistas, líderes políticos e religiosos — a busca da essência da vida, o significado da existência.

Indubitavelmente, suas maiores obras nessa fase são os filmes que fez para rede de televisão italiana RAI, entre os anos de 1970 e 1973, que ficaram conhecidos como os quatro filósofos: Sócrates, Santo Agostinho, René Descartes e Blaise Pascal, isto é, dois grandes pensadores da Antiguidade e Idade Média e dois grandes pensadores do período moderno. Originalmente, o projeto abrangeria também o pensamento de Karl Marx, centrando o roteiro na relação do pensador com seu amigo Friedrich Engels e o trabalhar pela humanidade, mas isto não se concretizou.

Parece-nos que em cada um desses filósofos Rossellini colocou as suas próprias dúvidas existenciais, mas, certamente, Sócrates era o personagem com quem ele mais se identificava, certamente pela influência que teve na formação do pensamento da sociedade ocidental.

Mas, na verdade, sabemos pouco sobre Sócrates, embora exista uma vasta literatura sobre os seus pensamentos. O que chegou de sua época até nós, veio, principalmente, através dos escritos de Xenofontes, Platão e Aristóteles, dado que Sócrates tinha a postura de não escrever nada do que pensava. Sabemos que ele fazia a apologia da oratória, embora se contrapusesse aos sofistas. Seu método interrogativo levava à aporia, onde as perguntas eram feitas num processo que conduziam o oponente a um beco sem saída. O episódio do seu julgamento e da sua morte, inclusive, o transformaram em um ícone político na defesa de ideias, sendo esse episódio um dos mais importantes da história, a altura do julgamento de Cristo na Palestina, onde o martírio foi usado como arma contra a intolerância. E é o episódio do julgamento que tem maior destaque no filme sobre Sócrates feito por Rossellini.

Após ter filmado O Messias, com sua interpretação sobre Cristo, Rossellini tinha um projeto de filmes reflexivos sobre a ética e a ciência. Naquela ocasião, ele afirmou que “achava que era possível a ciência e moral caminharem juntas, porque o maior dom da natureza, ou Deus, como cada uma achar melhor, é o nosso cérebro, nossa inteligência, a possibilidade de ser inteligente — temos o instrumento, mas não sabemos usá-lo. Quais são então as possibilidades para o nosso futuro? Uma delas é a mídia. Se ela for usada adequadamente, podemos fazer o nosso tipo de operação.”

Em um momento de crise da sociedade contemporânea, depois dela ter passado pela tentativa de implantação de diversas utopias — tal como o socialismo real da União Soviética e o bloco socialista, do socialismo eugênico da Alemanha nazista, do fascismo italiano e japonês — vemos que todas essas experiências tiveram sua origem no pensamento racional iluminista herdado, em ultima instância, do pensamento socrático-platonico. O conceito da apologia da ciência como última instancia da humanidade prevaleceu em todas elas. E, nesse sentido, a ciência nunca caminhou junta com a ética. E muito menos a mídia, que sempre foi um instrumento dessas sociedades.

A sociedade da mercadoria, erigida pela burguesia liberal, com sua “visão de mundo” do fim da história, levou às ultimas consequências a construção do império da razão onde a existência de um homem com múltiplas facetas, como era a forma de pensar de Rossellini, não tem mais lugar.

Talvez a resposta que deu Alfred Hitchcock, quando da polêmica afirmação de Rossellini — “o cinema está morto” — dizendo que “o cinema de Rossellini é que morreu”, faça mais sentido, pois a lógica de mercado e os conceitos de seu maior ídolo, Sócrates, construíram um mundo onde ele e outros utopistas, como Glauber Rocha, por exemplo, não têm mais lugar, pois a forma como viam a arte tornou-se incompreendida para o público em geral, que vive a “visão de mundo” da sociedade da mercadoria.

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