O movimento do etcétera

Ao completar uma semana, AcampaRio reduz assembleias, desburocratiza-se e permite que Cinelândia ocupada articule-se com fluxos e demandas da cidade

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Por Bruno Cava | Imagem: Jackson Pollock

A acampada do Rio completou uma semana. Pra quem está vivendo seus dias e noites, foi muito mais. A ocupação não só transformou radicalmente o espaço, como o tempo. Tornou-se mais espesso e mais rico, saturado de momentos criativos e inesperados. Se a praça da Cinelândia já comportava diariamente suas crônicas, agora elas multiplicaram por mil. Cada dia é um mundo e mil coisas acontecem ao mesmo tempo.

A história da acampada é a história de seus encontros, de suas convergências e divergências. Os riscos iniciais da pulsão de identidade e consenso não fazem mais sentido. Mais que um coletivo autogestionário, a acampada se construiu como um trânsito. Não é autogestão como autossuficiência, mas como autonomia. Não há um dentro e um fora e, portanto, certo ritual para quem ainda não está passe a fazer parte, identificando-se com os “mais antigos”. É só chegar! e fazer, que automaticamente já se é parte. Reduziram-se as assembleias, desburocratizou-se o acampamento. Ela não é mais vista como a culminância e o eixo do processo, mas apenas um momento, embora importante. Mesmo porque nenhuma estrutura pode representar os elementos de criatividade, mutação, resistência, de reinvenção cotidiana. Atravessada por todos os lados, a praça ocupada vai se amalgamando com os fluxos da cidade e suas demandas concretas.

A cada dia, o OcupaRio se qualifica, se intensifica, se autovaloriza. Já são mais de 150 barracas. Têm geradores, refeitório, pequenos ateliês, oficinas teóricas, palcos, um microfone aberto. Têm grupos de trabalho (GT) mais ou menos constantes (de alimentação, atividades, segurança, teoria, queer, arte e cultura, antropofagia etc), de não-trabalho, grupos de afinidades, coletivos autoformados e até um GT´aime. Predominam os jovens de 20 a 30 anos, mas todas as idades estão presentes. É uma dinâmica de cauda longa, sem lideranças ou grupo dominante. Se tem punks eles não se limitam à anarquia fácil, se tem autogestionários não querem se isolar, se tem marxistas não levaram seus marxímetros, se tem hackers aprenderam a dançar etc. Constroem no comum das relações, no que rolar na hora, sem preocupação excessiva com consensos. É um movimento do etcétera. Um imenso, heterogêneo e inclassificável etcétera. Por isso, a assembléia não tem que ficar se obcecando muito com os medos e riscos ante mal intencionados ou oportunistas, como se tivesse a missão de “proteger” as pessoas e preservar a pureza do movimento. Elas não precisam, porque essas não são bobas. São como gatos que já nasceram pobres e livres. Alguém já viu um rebanho de gatos?

Esse etcétera simplesmente não é representado na política institucional, na grande imprensa, na cultura comercial. Seu desejo de existir não era enunciado, não se articulava, não podia ser visto nem se ver. Num processo dinâmico, esse etcétera se compõe como classe. Ganha não uma única voz de coro, mas muitas. Em vez da linha política ou editorial, como partidos e grandes jornais se apresentam, uma polifonia. Que não é qualquer coisa. Basta ver como apparatchiks do PSTU e a pauta anticorrupção da revista Veja foram rechaçados espontaneamente.

Há articulações com os movimentos contra as remoções, o choque de ordem, o desenvolvimentismo de Belo Monte, o sistema penal seletivo e racista, a criminalização dos movimentos sociais; pelo reconhecimento do trabalho informal, da cultura livre, de uma educação mais qualificada e aberta, pelo passe livre, por uma democracia real além da representação, do estado e do mercado. Se o OcupaRio é de esquerda, certamente não é essa esquerda que também governa o país, está nos aparelhos partidários ou no fio vermelho da academia. Entreouve-se frequentemente nos debates a palavra ‘capitalismo’. Organizam-se oficinas de leitura, como sobre Multidão (Antonio Negri e Michael Hardt). Está muito politizado. Às vezes, a pessoa chega pra um acampamento de verão e de repente se vê também fazendo política a fundo, às vezes a pessoa vai fazer política e também acaba curtindo um acampamento de verão. E etcétera!

Aliás, tudo ali tem dimensão política. Não há separação entre questões práticas e questões políticas. Quando se decide sobre a segurança, deve-se evitar criar uma nova polícia, e  pensar a relação com os moradores de rua, os camelôs, os guardas municipais, os punguistas matinais que “fazem um ganho” na praça e, quem sabe, tentar achar convergências e trazê-los para mais perto. Mesmo a alimentação não é um problema interno, na medida em que não se planta a comida, ela vem da cidade, depende de relações.

O OcupaRio não tem data para acabar. É manifestação permanente e mutante. A vantagem das redes colaborativas é que, do mesmo modo que podem se realizar numa praça ou marcha, podem voltar a se virtualizar e assim sucessivamente. Real e virtual não se opõem. Se amanhã houver alguma covardia por parte dos poderes constituídos, o movimento vai continuar e vai crescer. Afinal, as pessoas são as mesmas. Ou melhor, não são mais as mesmas.

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