A encruzilhada da Líbia pós-Gaddafi

Começa etapa que decidirá futuro do país: será possível conciliar interesses díspares dos grupos políticos e tribos que enfrentaram regime?

 

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Por Patrick Raimzadeh, do Le Monde Diplomatique

Entusiasmados pelas revoltas na Tunísia e no Egito, que em poucas semanas provocaram a renúncia dos ditadores, muitos analistas quiseram acreditar que o mesmo aconteceria com a insurreição líbia de 17 de fevereiro de 2001. A única coisa a fazer era se emocionar com as imagens– difundidas repetidamente por todos os canais – dos rebeldes de Cirenaica se lançando no começo de março, em suas pick-ups, pela rota desértica rumo a oeste. Afirmavam com orgulho que podiam “liberar” Tripoli em dois dias.

No entanto, depois de mais de seis meses de guerra civil e 8 mil missões de bombardeio da OTAN, as frentes de Brega e Misrata quase não evoluiram. As ações decisivas no plano militar, que em poucos dias levaram à queda de Trípoli, não foram produto dessas populações do leste, mas principalmente das populações de algumas cidades do oeste, lideradas por uma grande tribo árabe das montanhas do oeste (Jebel Nefusa): os Zintan.

Os três pilares do sistema de Gaddafi

Para compreender as especificidades desta guerra civil e os imensos desafios da era pós-Gaddafi, convém repassar as principais características do sistema de poder, implantado há 42 anos. Apresentado como jamahiriyo (de Jamahiriya, “Estado das masas”), ele apoiava-se em três fontes de legitimidade: revolucionária, militar e tribal. Desde 1975, esses três pilares permitiram que sua longevidade fosse garantida. E seguiram funcionando, ainda que de maneira degradada, durante seis meses depois do começo da insurreição.

Em primeiro lugar, os comitês revolucionários, que podem ser comparados aos partidos Baas – o do Iraque, de Saddam Hussein, e o da Síria, dos al-Assad. Presentes no seio de todas as estruturas do Estado e das grandes empresas, deviam ser garantias da doutrina jamahiriysta e da mobilização das massas , segundo o modelos dos Guardas Vermelhos chineses ou dos Guardiões da Revolução iranianos. Seus cerca de 30 mil membros, cooptados, recebiam promoções e recompensas materiais. Foram eles que invervieram em Benghasi, na repressão à primeira manifestação de 15 de fevereiro de 2011 – o que culminou no começo da insurreição dois dias depois. Os comitês revolucionários apoiavam-se em diferentes milícias presentes em todo o país, agrupadas sob o vocábulo genérico de “guardas revolucionários”. Esses homens, armados e vestidos de civis, desempenharam um papel de impedimento, ou repressão, desde que a insurreição começou.

Em segundo lugar, as guardas pretorianas, dedicadas à proteção do coronel Gaddafi e sua família. Antes da insurreição, calculava-se que contavam com aproximadamente 15 mil homens, divididos em três grandes batalhões chamados “de segurança” (entre eles o de Bengasi, que se dissolveu nos primeiros dias, ainda que muitos de seus líderes e soldados recuassem para Trípoli) e três brigadas inter-armasOs membros dessas unidades foram recrutados principalmente no seio das grandes tribos do centro e do sul da Líbia, consideradas fiéis ao regime (Qadadfa e Magariha). Dispunham de muitas vantagens financeiras – bonificações salariais – ou em espécie – carros ou viagens ao estrangeiro. Trata-se de unidades que lutaram durante quase seis meses nas três frentes (Marsa Brega, Misrata e logo Jebel Nefusa) e que interviram pontualmente nas cidades da Tripolitania (Zawiya, Sabrata, Zwara) para reprimir os inícios da insurreição em fevereiro e março. O filho mais novo do coronel Gaddafi, Jamis, dirigia umas das três brigadas na frente de Misrata; seu irmão mais velho, Mustasim, teria dirigido outra.

O sentimento de pertença tribal e sua instrumentalização por parte do poder constitui o terceiro elemento importante que pode explicar a longevidade do sistema Gaddafi. Durante os primeiros anos da Líbia revolucionária, entre 1969 e 1975, o poder não fazia referência às tribos. Mas, em 1975, o Livro Verde as devolvia ao lugar de honra e lhes consagrava um capítulo inteiro1. Desde então, as tribos constituem um elemento indissociável do clientelismo que está no coração do sistema. Trata-se de distribuição da renda petrolífera cuidando de respeitar os equilíbrios entre tribos e regiões, sob risco de ameaçar a paz social, ou até mesmo a unidade do país.

Velho poder baseado em laços tradicionais

O coronel Gaddafi soube fabricar, por muito tempo, um consenso com as tribos. Alternava restrições, ameaças, retribuições e negociações. Longe de ser uma estrutura monolítica ou piramidal, em tempos de paz, a tribo líbia contemporânea parece, acima de tudo, com uma rede de solidariedade flexível, que permite administrar recursos ou cargos e autoriza estratégias pessoais ou coletivas.

Dependendo da proximidade ou da distância de um de seus membros com o Príncipe, o pertencimento a uma tribo oferece vantagens ou, pelo contrário, representa uma desvantagem. Assim, os habitantes de Misrata2 – as grandes famílias da cidade, ainda quando a realidade não conforma uma tribo3 em sentido estrito – foram favorecidos por Gaddafi até 1975. Logo, devido a divergências pessoais e ideológicas com o coronel Omar al-Mheichi (um de seus companheiros da primeira hora, originário de Misrata), o líder rompeu a aliança com eles para voltar-se para seus adversários históricos, os Warfalla, originários de Bani Walid. Desde então, os habitantes de Misrata foram separados das funções-chave (guardas pretorianas, serviços de segurança) e relegados a postos tecnocratas.

Em tempos de guerra, as tribos podem constituir uma ferramenta de mobilização particularmente eficaz em zonas rurais e nas cidades, onde as populações originárias de uma mesma região estão agrupadas em bairros. Ali também estão segmentadas em várias dezenas de subconjuntos,cada uma dispondo de seu chefe. Assim pode-se observar, ao iniciar esse conflito, como os campos invocavam os juramentos de lealdade recebidos de seus chefes de uma mesma tribo: alguns dos membros da tribo Qadadfa que residem em Bengasi, por exemplo, juraram lealdade ao Conselho Nacional de Transição rebelde, ainda que se abstendo do comprometimento militar em suas tropas. Por outro lado, as relações de tribos aliadas ao Conselho ou a Gaddafi que se apresentaram na imprensa no começo do conflito não têm muito sentido.

No centro, no oeste e no sul do país, as zonas rurais e as cidade povoadas majoritariamente por membros das grandes tribos muito comprometidas com o sistema Gaddafi sublevaram pouco. Algumas forneceram combatentes ao regime. Foi o caso, particularmente, nas regiões de Bani Walid (território dos Warfalla), em Tarhuna (território da importante confederação tribal dos Tarhuna, que representa mais da metade da população de Trípoli), em Sirte (território dos Qadadfa), em Fezzan (território das populações Qadadfa, Magariha, Hassawna e Tuareg, retribuídas ou recrutadas há tempo pelo regime), em Tawurgha (cujos habitantes manifestam uma velha desconfiança aos habitantes de Misrata, que se encontram muito próximos) ou até em Ghadames (na fronteira com a Argélia, cuja importante população Jaramna permanece até hoje fiel ao poder).

Outras regiões, ainda que simpatizantes do regime, permaneceram neutras, esperando para ver para onde a balança iria se inclinar: as cidades de Mizda (território dos Machachiya e dos Awlad Bu Sayf), de Al’Ujeylat, Waddam, Hun, Sukna e Zliten (os habitantes de Awalad Shaykh desconfiam dos de Misrata, o que explica, em parte, o fato de que, apesar dos repetidos ataques e os numerosos bombardeios da OTAN, os rebeldes de Misrata não conseguiram ocupar Awalad Shaykh).

Assim, de um povo a outro, surgem estratégias diferenciadas, ligadas a antagonismos que remontam às vezes até a colonização italiana. Por exemplo, os que opõe os Zintan a seus grandes rivais históricos, os Machaciya. Antes da insurreição na cidade de Mizda, os membros das tribos coexistiam pacificamente, ainda que o casamento entre seus membros continuasse proibido. Quando a cidade de Zintan, território dos Zintan, se rebelou, os Zintan de Mazda se uniram a seus companheiros na insurreição, cuidando de não atacar nunca Mizda, onde os Machaciya permaneceram neutros… contrariamente aos de outros povos, que se uniram às tropas dos que apoiavam Gaddafi. Os exemplos são muitos. Mas o importante é que os mecanismos tradicionais de negociação permitiram limitar um pouco a violência e evitar situações irreversíveis, que tornariam a reconstrução de uma comunidade nacional mais difícil, assim que o conflito acabasse.

Oeste, decisivo na batalha final

No caso da capital, Trípoli, a ausência de um levante generalizado, até a chegada dos contingentes provenientes das cidades “liberadas” de Tripolitânia, pode ser explicada por dois fatores. Por um lado, a densidade do aparato de segurança e repressão: guardas revolucionárias, batalhões de segurança e “guardas populares” constituídas por presos comuns liberados, organizados como milícia e controlados pelos comitês revolucionários. E, por outro lado, a própria sociologia da cidade. Ao contrário de Bengasi – onde a coesão das grandes tribos de Cirenaica, unidas pela mesma rejeição ao poder, permitiu a unidade de ação – metade de Trípoli é constituída por populações das grandes tribos originárias das regiões de Bani Walid e Tarhuna, cujo destino está intimamente ligado ao do regime de Gaddafi. A outra metade é composta por membros de pequenas tribos ou por habitantes urbanos que não constituem grupos importantes com capacidade para se transformarem em estruturas de mobilização e combate. As tentativas de revolta em alguns bairros foram rapidamente reprimidas.

A “ruptura tática” anunciada durante cinco meses como iminente nas frentes de Brega e Misrata, pelos portavozes do Conselho Nacional de Transição (CNT) e da OTAN, finalmente foi operada pela poderosa tribo árabe dos Zintan – originária de Jebel Nefussa – que contava com apenas 3 mil combatentes em começo de maio. Uma das chaves do êxito residiu na capacidade para integrar a tradição líbia de primazia do local sobre o regional e do regional sobre o nacional. Ou seja, é responsabilidade dos habitantes originários de cada região ou cidade “libertá-las”. Com efeito, os Zintan – unidos à rebelião no oste – recrutaram, formaram e equiparam, em Zintan, batalhões originários das cidades a serem liberadas (Zawiya, Surman e Garian), que logo conduziram simultaneamente os ataques a essas três cidades.

Ainda que os comunicadores da OTAN e os responsáveis políticos franceses e britânicos se esforcem pela celebração do papel decisivo dos bombardeios na evolução da situação em favor dos rebeldes, nem a ruptura tática continuamente anunciada nas frentes de Brega e Misrata, nem a proclamada desintegração do regime graças ao bombardeio de lugares estratégicos de Trípoli, ou das residências do coronel Gaddafi, tiveram uma incidência decisiva no desenvolvimento da guerra.

Este reequilíbrio, rumo a oeste, da realidade de uma insurreição que em um primeiro momento surgiu no leste, suscitará daqui para adiante a questão da verdadeira representatividade do Conselho Nacional de Transição. Atualmente, ele não integra, em suas estruturas, os responsáveis da rebelião vitoriosa no oeste. Em outras palavas, o CNT – se deseja continuar invocando o título de “representante legítimo do povo líbia”, que foi reconhecido a partir do mês de março pela França e Grã-Bretanha – deverá conceder rapidamente aos rebeldes do oeste uma representação política que esteja de acordo com seu papel militar essencial na vitória final. Do contrário, correrá o risco de ver estruturas autonômas se estabelecerem rapidamente no oeste.

O outro desafio consistirá em integrar, às instâncias futuras de poder, representantes das regiões e das tribos que durante muito tempo apoiaram majoritariamente o regime de Gaddafi (regiões de Sirte, Tarhuna, Bani Walid, Sebha, Ghat e Gadames).

Sair da lógica de guerra civil passará, portanto, pela decisão do CNT de oferecer a essas populações, e aos dirigentes militares e membros dos comitês revolucionários menos comprometidos, garantias sobre seu futuro. Se os insurgentes, impulsionados pela sua vitória militar, tentarem impor sua vontade pelas armas às tribos que durante muito tempo permaneceram fiéis a Gaddafi – e que dispõem de influências territoriais – é, ao contrário, a lógica da guerra que poderia continuar.

Em uma lógica de superação da guerra, os mecanismos beduínos tradicionais de mediação e de negociação deverão cumprir um papel essencial. Porque se algumas tribos apoiaram Gaddafi por muito tempo, nada está petrificado na tradição beduína onde o pragmatismo e o interesse do grupo frequentemente se impõe sobre as lógicas da honra destacadas nas descrições frequentemente caricaturescas que se fazem destas sociedades no Ocidente. O interesse geral em exportar petróleo rapidamente e repartir a renda com base em um mecanismo transparente e equilibrado entre as regiões também poderá cumprir um papel estabilizador – desde que o novo poder se encarregue de deixar uma autonomia importante às regiões e cidades, na gestão de seus assuntos cotidianos.

Sair da guerra civil constituirá um desafio verdadeiro desafio, em um país onde as armas já estão circulando, que não tem nenhuma cultura de institucionalidade política e onde o interesse local predomina sobre o interesse nacional. Em que momento a OTAN julgará que as populações civis não necessitam de sua “proteção”.

 

Patrick Haimzadeh é ex-diplomata na embaixada de França em Tripoli (2001-2004), autor de Au coeur de la Libye de Kadhafi [“No coração da Líbia de Gaddafi”, sem edição brasileira no momento]

1 Ver a edição árabe do Centro Mundial de Estudos e Investigação sobre o Livro Verde, Trípoli, 1999.

2 Os habitantes de Misrata levantaram-se em armas contra o regime imediatamente depois dos de Cirenaica. Existe uma grande proximidade sociológica e histórica entre os habitantes de Misrata y os de Bengasi, região onde se calcula que a metade da população es descendente de imigrantes originários de Misrata.

3 Entende-se aqui por “tribo” um grupo que compartilha um ancestral epônimo, de quem os membros descendem por filiacão baseada em ascendência paterna.

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