Hitchcock, arte e indústria

Em cartaz, ampla retrospectiva sobre obra do mestre — que, embora sempre autoral e inovador, nunca desprezou sucesso de público

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Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo

A maior retrospectiva da obra de Alfred Hitchcock já realizada no país está em cartaz nos Centros Culturais do Banco do Brasil (CCBBs) de São Paulo (até 24 de julho) e do Rio (até 14 de julho). São 54 longas-metragens, três curtas e 127 episódios da série televisiva Hitchcock presents.

Desnecessário falar sobre a importância de Hitchcock, o homem que transformou o suspense em linguagem e levou ao seu ponto máximo as possibilidades da narrativa cinematográfica clássica, com sua capacidade de manipular o olhar e a emoção do espectador.

Uma vasta bibliografia já se encarregou disso. Recomendo em especial três livros: o monumental Hitchcock/Truffaut (tradução de Rosa Freire d’Aguiar, Companhia das Letras), em que o mestre inglês fala exaustivamente de cada um de seus filmes ao admirador e discípulo francês; Hitchcock, publicado pela primeira vez por Eric Rohmer e Claude Chabrol em 1957, e absurdamente nunca traduzido no Brasil; e o introdutório Alfred Hitchcock, o mestre do medo (Brasiliense, esgotado), de Inácio Araujo.

O fracasso como erro

Chamo a atenção apenas para um aspecto que me parece central na figura do cineasta: ninguém conseguiu superar tão bem quanto ele a dicotomia que parece dilacerar o cinema desde seus primórdios, a saber, a dicotomia entre arte e indústria. Para Hitchcock, um filme seria tanto mais bem-sucedido artisticamente quanto mais êxito obtivesse na bilheteria. Para ele, a sentença não era arte x indústria, mas arte = indústria, o que, na boca de um outro cineasta (que dirá de um crítico) soaria como uma heresia mercenária.

Falando sobre o eventual fracasso de algum de seus filmes, Hitchcock nunca culpava a incompreensão da plateia, a tacanhez do sistema, os problemas de distribuição ou qualquer outra coisa do tipo. Via-o como um erro seu: um ator mal escolhido para ser o vilão ou o herói, uma revelação da trama feita na hora errada, um truque ótico deficiente. Ou uma avaliação errônea sua sobre a psique de seu público.

Sucesso e invenção

Por exemplo: considerava que A tortura do silêncio tinha fracassado (relativamente) na bilheteria porque a idéia católica do segredo do confessionário era pouco compreensível para um espectador majoritariamente protestante. Pouco importava para ele que o filme fosse, segundo boa parte da crítica (e me incluo nessa linha), uma obra-prima. O fato de o grande público não se interessar era um sinal de fraqueza, de falha, de insuficiência.

Se, por um lado, sua obra ajuda a solapar a desconfiança um tanto arrogante da crítica diante de tudo o que faz sucesso, ajuda também a jogar por terra a ideia de que, para atingir o público, é preciso abrir mão da ousadia e da invenção, repetindo fórmulas e formas já experimentadas (e transformadas em fôrmas). Poucos cineastas inventaram tanto, em termos de decupagem, enquadramento, movimentos de câmera. Poucos pensaram de maneira tão cinematográfica (vale dizer: tão distante do discurso literário e da impostação teatral).

Por tudo isso, e pelo puro prazer que seus filmes proporcionam, sempre vale a pena voltar a Hitchcock.

Aqui, uma colagem de suas breves aparições em seus filmes, uma marca registrada que era várias coisas ao mesmo tempo: blague, assinatura e pura vaidade.

E aqui, uma preciosa entrevista do mestre sobre a montagem (em inglês, com legendas em espanhol).

José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Escreve suas criticas hoje em seu próprio blog e na revista Carta Capital.

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