Caso Gegê: quais mãos orquestraram o julgamento?

Perseguição de nove anos a líder de movimentos pela moradia revela método usado por conservadores para criminalizar lutas sociais

.

Por Renata Bessi, colaboradora de Outras Palavras

O promotor de Justiça, Roberto Tardelli, admitiu no último dia do julgamento do líder comunitário Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, que seu objetivo inicial era pedir a condenação do réu, mas que ao longo do júri se deu conta de que a condenação era temerária e acabou pedindo a absolvição do líder. “Não posso fazer isso. Não é honesto. Não posso sustentar algo que reconheço ser temerário”. Ao final de dois dias de julgamento (4 e 5 de abril), Gegê foi absolvido pelo juri popular.

Gegê foi acusado por quase nove anos de ter dado fuga a um criminoso e ser mandante de um crime ocorrido em um acampamento do Movimento de Moradia do Centro (MMC), em 2002. Dois anos depois do crime, Gegê foi preso por mais de 50 dias. Após ser solto, por meio de habeas corpus, sofreu uma prolongada situação de instabilidade e insegurança, na qual diversos pedidos de liberdade eram concedidos para, momentos depois, serem repentinamente revogados. Neste período, Tardelli pediu por três vezes a prisão de Gegê.

Em um discurso emocionado, diante do júri e da pressão de um plenário lotado por representantes de movimentos sociais e parlamentares, o promotor, responsável pela acusação, afirmou que também é um defensor dos direitos humanos e que aprendeu ao longo de sua carreira a fugir de um grande problema, a “achologia”. Exemplificou dizendo que foge do erro de achar que alguém está mentindo e a partir disso procurar provas para embasar o que acha. “O que eu acho não tem sentido nenhum”.

Afirmou ainda que ali, no julgamento, não estava em questão a discussão sobre a validade ou não da ação dos movimentos sociais. “Esta discussão deve ser feita em outro lugar, em outro momento, nas eleições”, disse Tardelli, tentando se resguardar da acusação de movimentos e entidades que lutam pelos direitos humanos de que o caso, sem provas fundamentadas, se estendeu até o julgamento com o objetivo de criminalizar os movimentos sociais. Argumentou ainda que o inquérito foi tratado de forma burocrática e o que predominou no processo foi um raciocínio burocrático e não preconceituoso.“Não se tinha ideia da transcendência de sua [de Gegê] liderança”.

Apesar dos argumentos sustentando a isenção ideológica e contra a prática da “achologia”, um ponto em seu acalorado discurso destoou da argumentação. O promotor afirmou que pediu a prisão do líder de movimento social convencido de que ele possuía uma espécie de milícia que garantia tiranicamente a ordem nos acampamentos (do MMC). Apesar do seu convencimento, responsável por arrastar o caso até às últimas consequências — o júri — nenhuma prova foi apresentada pelo promotor capaz de sustentar aos jurados tal convencimento.

Se para Tardelli a cena final do crime não é nítida, como afirmou, e por isso optou pelo pedido de absolvição “por ser menos ruim a absolvição equivocada do que a condenação equivocada”, para a defesa de Gegê, sustentada pelos advogados Guilherme Madi Rezende e Priscila Pamela dos Santos, os fatos se configuram com clareza. A morte de José Alberto dos Santos Pereira Mendes foi causada por Danilo, como as testemunhas de acusação confirmaram. Porém Gegê não ajudou na fuga, como sustentaram. “Eles estão mentindo”, afirmou Rezende diante do júri.

Naquele dia Gegê havia participado, como contou durante sua defesa, de um encontro de jovens da Central de Movimentos Populares do Brasil. Terminado o encontro, foi para a rua do Ouvidor, onde ficava uma ocupação do MMC. Luiza Barbosa, uma das coordenadores do movimento, que estava na portaria do acampamento, ligou para Gegê perguntando se naquele dia ele iria, como de costume, para o acampamento. Ele confirmou que sim e se dirigiu para a casa de Luiz, um dos coordenadores do MMC, para irem juntos. “Quando estávamos chegando no acampamento meu celular toca. Era Luiza dizendo para que eu não fosse pois havia acabado de acontecer o crime. Eu disse que já estava na porta do acampamento. Ainda na porta, me deparei com Jorge Leal. Ele disse para não entrar pois poderia morrer também. Não entrei. Chegou a polícia. Dois policiais entraram e logo após saíram com o corpo. Uma moça grávida passou mal e um dos policiais pediu que eu a levasse para o hospital. Fui. Neste meio tempo liguei para a doutora Michael Mary Nolan. Quando voltei para o acampamento, ela já estava lá”. Luiza e Luiz, testemunhas de defesa, confirmaram a versão de Gegê.

O assassinato foi uma armação, de acordo com Rezende, para tirar Gegê e o MMC do acampamento, dando espaço para o Movimento de Moradia dos Trabalhadores Individuais (MMTI), coordenado por Jorge Leal. O movimento dominou o local e abriu espaço para o tráfico de drogas. “O local transformou-se de acampamento em favela. Tiraram a organização harmônica e pacífica, facilitando a implantação do tráfico de drogas”.

A operação da Polícia Civil chamada Cavalo de Tróia, em 2009, que efetuou busca e apreensão de drogas no interior da favela, comprova as novas características do local. Segundo o próprio Jorge Leal, uma das testemunhas de acusação, muitas pessoas foram detidas. Maria dos Reis, esposa da vítima, conhecida como Nice, também confirmou. “Hoje tem tráfico. Na época do Gegê não tinha”.

Após a saída do MMC do acampamento, Jorge Leal presidiu por oito anos o MMTI. “Na época do Gegê o acampamento tinha cerca de 70 barracos e comigo passou para 300. Liberei para quem quisesse entrar”, afirmou Jorge Leal. Sobre a entrada do tráfico, ele disse: “Se aumentou o crime lá dentro não cabia a mim me meter”.

Desconstrução

Durante o júri, a estratégia da acusação foi tentar construir uma imagem autoritária de Gegê. “A gente tinha que fazer coisas que não queria. Ir em assembleia, ato político. Se bebia, não podia entrar”, afirmou a testemunha de acusação, Jorge Leal.

Maria dos Reis relatou a diferença nas regras de convívio entre as épocas do MMC e o MMTI. “Tinha assembleia na época do Gegê e as coisas eram decididas lá. Com Jorge Leal, a gente não precisava participar de assembléia, não existiam regras. Cada um fazia o que queria.” Quando indagada pelo advogado de defesa se as coisas ficaram melhores quando Gegê saiu, ela afirmou que sim. “Viver sob regras é difícil”.

Jorge Leal afirmou que o novo movimento foi formado para fugir da exploração do MMC, que cobrava uma taxa equivalente a três passagens de ônibus. “A taxa era cobrada porque a gente estava construindo o local para gente viver. A gente precisava construir toda a parte hidraulica e de iluminação, entre outros gastos”, contou Luiza em seu depoimento. A contradição apontada pelo advogado de defesa é que a ata de formação do MMTI também previa a cobrança de taxas, embora os problemas do espaço não fossem resolvidos coletivamente.

A juíza Eva Lobo também questionou Gegê sobre a proibição do uso de álcool no acampamento, citando seu próprio exemplo. “Eu gosto de chegar em casa após o trabalho e tomar uma cervejinha, um vinho”, afirmou, dizendo não entender a proibição. Gegê foi contundente em sua resposta. “A senhora disse muito bem, ‘quando a senhora chega em sua casa’. O acampamento ainda não é uma casa. Precisamos de algumas regras para viver em coletividade”.

Raimundo Nonato Mendes, outra testemunha de acusação e irmão da vítima, afirmou que as regras existiam para que drogas e álcool não entrassem no acampamento. “Por um lado, isso (as regras) era bom por causa da bagunça”, reconheceu.

Contradições

As testemunhas de acusação caíram em contradição diante da arguição do próprio promotor, que em dados momentos ficou visivelmente irritado. “Por que vocês não denunciaram o Gegê na hora? Ninguém fez isso por quê? A Polícia Militar estava lá, o Gegê estava lá. Esta é a pergunta que me fiz desde que peguei este processo. Já que a maioria era contra Gegê [como afirmou Jorge Leal em seu depoimento] alguém devia ter pensado nisso”, disse Tardelli a Jorge Leal. A resposta foi evasiva: “Não pensamos nisso na hora. Pedimos pelo amor de Deus que salvassem o ferido”, embora ele mesmo não tenha prestado socorro à vítima.

E mais, Maria dos Reis admitiu que a briga entre José Alberto e Danilo não tinha nada a ver com o movimento, mas sim com um desentendimento que tiveram uma semana antes do crime, em que Danilo havia ameaçado a vítima. Danilo não participava do movimento e não vivia no acampamento, seus sogros moravam no local. Durante toda o processo ele não foi procurado. Toda a investigação foi direcionada contra Gegê.

Sobre o acampamento

O acampamento era localizado na Vila Carioca, na avenida Presidente Wilson. As famílias integrantes da ocupação, em sua grande maioria, eram oriundas do despejo de um prédio, pertencente ao então falido Banco Nacional, na Rua Líbero Badaró, n. 89, no centro da capital paulista. Essa remoção para a nova área fora autorizada pelo governo do Estado, em negociações que envolveram o então governador Mário Covas.

De acordo com a freira e advogada Michael Mary Nolan, testemunha de defesa e que presta assessoria ao movimento, o acampamento estava sendo planejado para ser um local especial. “Era uma oportunidade para se fazer algo novo em relação à moradia”. Segundo ela, existia uma série de ações em andamento para tornar o local mais humanizado. Havia um convênio com o Hospital Samaritano, para atender crianças e mulheres. A Pastoral da Criança também estava lá. Além disso, alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP) estavam desenvolvento projeto para o terreno. “Quando as famílias chegaram lá era um matagal. Fizeram toda a limpeza e nivelamento do terreno. Trabalhavam em sistema de mutirão”.

De acordo com Michael, na época em que lideranças começaram a sofrer ameaças do tráfico, foram feitos boletins de ocorrência que não tiveram resultado algum.

O cantor Chico Cesar, irmão de Gegê, também foi testemunha de defesa. “Tenho a convicção de que há um equívoco nesta acusação. Gegê é um altruísta. Poderia ter crescido na burocracia da gestão pública, mas prefere a organização popular. Prefere organizar pessoas que vivem em condições subumanas”, disse. A religiosa Michael deu seu depoimento no mesmo sentido. “Ele é respeitado, visto como liderança e não usa esta condição em benefício próprio. Coloca esta liderança a serviço do povo”.

Ao final, Tardelli concluiu sobre Gegê: “Parece liderar com absoluta legitimidade.”

Presença

Durante os dois dias de juri o plenário 4 do Fórum Criminal da Barra Funda se manteve lotado por representantes de movimentos sociais, sindical, estudantil e parlamentares. Passaram por lá os deputados federais Paulo Teixeira, Janete Pietá, Ivan Valente, os senadores Edurdo Suplicy, testemunha de defesa, João Capiberibe (Amapá), os deputados estaduais José Cândido, Simão Pedro, Adriano Diogo, os vereadores Ítalo Cardoso e Juliana Cardoso, ambos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Vereadores, o ex-vereador Beto Custódio, o ex-deputado estadual Renato Simões, e o ex-ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi.

Leia Também:

Um comentario para "Caso Gegê: quais mãos orquestraram o julgamento?"

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *