Retratos da Revolução, aos Cem Dias

Por que a revolta árabe repercute pelo mundo. Que forças tentam dominá-la. Como ela altera nossas ideias de transformação social

 

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Por Antonio Martins

Em 17 de dezembro de 2010, Mouhamed Bouzazi, um vendedor ambulante tunisino de 26 anos, postou uma mensagem1 no Facebook, ateou fogo ao corpo (ele morreria em 4 de janeiro) e acendeu fagulha num barril de pólvora. Seu gesto desencadearia uma onda revolucionária poucas vezes vista na História, numa das regiões mais tensas, ricas e oprimidas do planeta. O mundo árabe, visto costumeiramente como um lugar de estagnação política, tornou-se centro de reviravoltas, inovações e esperança. Cem dias depois, o futuro da revolução permanece em aberto.

As mudanças já alcançadas são extraordinárias. Duas longas ditaduras – a tunisiana e a egípcia – caíram. Repressões brutais, com dezenas de mortos, não foram até o momento capazes de conter as multidões rebeladas no Iêmen, Bahrain e Síria (onde o ministério renunciou nesta manhã – 29/3 – e pode haver mudanças importantes nas próximas horas). A chama da revolta, embora temporariamente contida, continua acesa no Marrocos (cuja realeza tarda em implementar reformas anunciadas), Argélia e Jordânia.

Na Arábia Saudita, o velho soberano viu-se obrigado a oferecer múltiplos benefícios sociais, para tentar evitar o contágio de seu reino. Tudo indica que, a médio prazo (principalmente quando o Egito puder voltar-se para fora), os ventos da mudança questionarão a dominação israelense sobre a Palestina – onde manifestações de jovens começam a exigir o fim da rivalidade sectária entre Fatah e Hamas, os dois grupos políticos tradicionais.

As novidades políticas são extraordinárias e repercutirão muito além do Oriente Médio. Na Tunísia, e principalmente no Egito, pode-se falar num novo tipo de revolução. Ela marca, como definia Trotsky, “a entrada forçada das massas no governo de seu próprio destino”. Mas quanta diferença, em relação aos objetivos e meios pensados pelo velho revolucionário russo…

As novas multidões não se organizaram em partidos – autoconvocaram-se horizontalmente, usando como ferramentas as redes sociais. Não parecem desejar a “conquista” do poder político – e, sim, condições para que todos possam construir, coletivamente, o futuro comum. Nem crêem que a superação do capitalismo possa ser feita num momento mágico, em que se tomam as fortalezas das velhas classes dominantes e se instaura um “poder revolucionário” – que passa a comandar a construção da nova ordem.

Ainda assim – e, talvez, por isso mesmo… –, a ação dos jovens árabes subverte o modo hoje hegemônico de organizar a vida social. Toni Negri e Michael Hart notaram que, na Tunísia e Egito, o novo motor da transformação foi “a juventude altamente educada, cujas ambições são frustradas” pela mediocridade da vida quotidiana. Este novo sujeito social deseja “não somente acabar com a dependência e a pobreza, mas também empoderar e dar autonomia à população inteligente e altamente capaz”.

Mas tal desejo choca-se contra um capitalismo que concentra obsessivamente riqueza e poder. Por isso, imaginam Negri e Hart, só haverá saída se for possível “inventar” formas horizontais – portanto, pós-capitalistas – de administrar a produção social, a distribuição de riquezas e os recursos naturais. Em outras palavras, trata-se de constituir uma nova democracia, que permita optar todos os dias, não apenas nas eleições; e em que a multidão – ela própria, não seus “representantes” – assuma as decisões centrais.

Esta invenção tende a se tornar um projeto comum da juventude – no mundo árabe, nas periferias das metrópoles latino-americanas, nas universidades europeias, nos call-centers da Índia, nas fábricas da China. O desejo eclodiu primeiro no Oriente Médio, onde tomou forma de revolta. Lá, tudo é mais urgente, porque não havia nem a democracia de (cada vez mais) baixa intensidade que persiste no Ocidente. Porém, outras primaveras virão…

 

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O ineditismo e a velocidade da revolução nocautearam rapidamente dois déspotas. Zine Ben Ali, na Tunísia, e Hosni Bubarak, no Egito, controlavam com mão de ferro a oposição tradicional. Mas não souberam como reagir diante de jovens rebeldes que se preocuparam em dialogar com toda a sociedade, e criaram, na Praça Tahrir, um mundo em que cabiam todos os projetos reprimidos. Ambos haviam caído em 11 de fevereiro, menos de dois meses após a imolação de Mouhamed Bouzazi.

Mas as revoluções não são passeios. Passada a surpresa inicial, os ventos da mudança seriam  confrontados por poderes que se esforçam, na feliz definição de Immanuel Wallerstein, por  “enquadrá-los, limitá-los ou redirecioná-los”. Três processos contrários à revolução seriam, então, desencadeados: uma nova onda, muito mais selvagem, de repressão às revoltas, por parte das ditaduras; a presença do fundamentalismo islâmico; e a intervenção das potências ocidentais.

Brutalidade dos ditadores: A violência política é algo constante nas ditaduras do Oriente Médio, e já havia sido usada contra a multidão na Tunísia, Egito e Bahrain. Mas a escala em que Muammar Gaddafi a praticou na Líbia, a partir de 18 de fevereiro, não tinha paralelos até então.

Já não se tratava da brutalidade da polícia ou dos capangas (às vezes, montados em folclóricos camelos…). O ditador dirigia o poder de fogo do exército e da aviação militar contra a população das cidades rebeladas. Houve centenas de mortos, em duas ondas. Primeiro, o ditador combateu os levantes que tiraram de seu controle cidades a leste e oeste de Tripoli, a capital. Em muitas delas, isto foi inútil. Parte das formas armadas (assim como embaixadores e ministros) desertou ou aderiu à revolta.

Mas o poder militar dos opositores era inferior ao do exército leal ao regime. Por isso, após um período sob intensa pressão (em 27/2, Gaddafi perdeu Zawiyah, uma cidade a apenas 50 quilômetros de Tripoli), o ditador rearticulou-se, reagrupou suas forças e reconquistou pelas armas, entre 5 e 18/3, quase todas as cidades rebeladas.

O movimento gerou duas consequências. Na Líbia, a rebelião também militarizou-se – o que parece ter-lhe tirado o ímpeto transformador. A tomada de Benghazi, o centro dos rebeldes no Leste do país, foi marcada pela formação de comitês populares que se encarregavam dos serviços públicos (ler relatos 1 2). Esta democratização ampla, inspirada no Cairo e em Túnis, não se manifesta nos relatos e imagens recentes – onde aparecem apenas homens armados, a bordo de veículos de uso em combate, adotando posturas autoritárias.

No Oriente Médio, como previra o mesmo Wallerstein (ler A Líbia e a Esquerda), a selvageria foi vista como um sinal verde para outros ditadores. Criado o precedente, que impediria cada tirano de afogar em sangue as ameaças contra seu poder?

Em 18 de março, franco-atiradores postados no topo de edifícios em Sama’a, a capital do Iêmen, alvejaram participantes de uma manifestação. Mataram pelo menos 45 pessoas, e feriram centenas. Entre 19 e 26 de março, tropas sírias investiram contras as cidades rebeladas de Daraa, Banyas e Diez ez Zor. Cálculos dos manifestantes e de organizações de direitos humanos falam em 150 mortes.

Manipulação do Islã: A tentativa de islamizar a revolta é quase natural, numa parte do mundo em que a religião foi, durante décadas, o único refúgio seguro contra as múltiplas pressões do ocidente. O processo surge de forma mais nítida no Bahrain, onde uma maioria muçulmana xiita parece fazer da disputa sectária (contra os muçulmanos sunitas, que governam o país) o mote de sua revolta.

Mas ecos de um islamismo manipulado são ouvidos até mesmo no Egito. Em 19 de março, partidários do ex-ditador Hosni Mubarak hostilizaram, com insultos e pedradas, o diplomata (e possível candidato à Presidência) Muhammad ElBaradei, que se preparava para votar, num plesbiscito sobre reforma política. Baradei, que presidiu a Agência Internacional de Energia Atômica, é “acusado” (inclusive nos jornais egípcios de maior tiragem) de… ser casado com uma sueca.

É evidente que tais preconceitos nada podem oferecer, a setores sociais que desejam conectar-se como o mundo e transformá-lo. Mas os jovens que lideram as transformações, são, nas sociedades árabes, minoritários – ainda que muito ativos e dispostos a um diálogo social amplo. Por isso, não se deve desprezar a força da tradição.

Imperialismo “humanitário”: Entre as forças interessadas em desviar ou ao menos neutralizar a revolta, a que vive situação mais contraditória são os Estados ocidentais. No Oriente Médio, estão em dificuldades. Aliaram-se por décadas com os ditadores agora em xeque. Esta relação, somada a sua aliança estratégica com Israel, tornou-os cada vez menos admirados pela rua árabe. Mesmo Barack Obama, cuja eleição foi acolhida com entusiasmo, desgastou-se rapidamente. Uma enquete realizada na região, em agosto do ano passado, revelou que apenas 20% dos entrevistados viam positivamente a atuação do presidente norte-americano (o líder mais popular era o presidente turco, Recep Erdogan).

Disfarçada de “ajuda humanitária”, a invasão da Líbia visa, principalmente, enfrentar esta situação embaraçosa – um objetivo ainda mais urgente que controlar o petróleo daquele país. A ação militar oferece ao “Ocidente” a oportunidade de se associar à luta contra um ditador. Procura apagar as relações de grande cumplicidade que Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Itália mantiveram, ao menos nos últimos dez anos com Gaddafi. Acima de tudo, a operação procura permitir que estes países participem do novo tabuleiro da região em outras condições – que não a de meros apoiadores das tiranias.

No plano mundial – vale lembrar que o vendaval árabe pode ter repercussão planetária –, o objetivo é igualmente ousado. Quase vinte anos após as guerras civis sangrentas que dissolveram a Iugoslávia, busca-se recauchutar, perante parte da opinião pública, o velho conto das “intervenções humanitárias”. O desdobramento ideológico desta tentativa é claro. Ele pretende sugerir que as novas revoluções são um fenômeno de importância apenas local. As democracias ocidentais estariam saudáveis. Seriam, inclusive, suficientemente generosas para amparar os que lutam pelos direitos humanos em outras partes do globo.

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O esforço para neutralizar as revoluções árabes é, paradoxalmente, o sinal mais claro de que estão vivas. Incomodam. Desafiam. Constituem nesse momento, para lembrar mais uma vez Wallerstein, “a luta fundamental” – aquela em que é possível enxergar, em forma concentrada, inúmeros processos de transformação em curso pelo mundo.

A melhor maneira de estar com elas é conhecê-las e acompanhar seus movimentos. Cem dias após seu início, Outras Palavras inicia, com este texto, a publicação de uma série de artigos que analisará, país por país, o estado das transformações.


1“Estou viajando mãe. Perdoe-me. Reprovação e culpa não vão ser úteis. Estou perdido e está fora das minhas mãos. Perdoe-me se não fiz como você disse e desobedeci suas ordens. Culpe a era em que vivemos, não me culpe. Agora vou e não vou voltar. Repare que eu não chorei e não caíram lágrimas de meus olhos. Não há mais espaço para reprovações ou culpa nessa época de traição na terra do povo. Não estou me sentindo normal e nem no meu estado certo. Estou viajando e peço a quem conduz a viagem esquecer.”

 

 

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