Revolução Árabe: só a luta ensina

Ensaio exprime clima de otimismo com a revolução nos países árabes, e propõe que seja analisada na sua singularidade.

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Por Bruno Cava, do Outras Palavras | Imagem: Dança, segunda versão, Matisse, 1910
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A revolução árabe abriu a nova década. O eixo revolucionário começa a migrar da América do Sul, onde tantas mudanças incutiu nos anos 2000, para o mundo árabe. Os tumultos na Tunísia contagiaram as pessoas no Egito, na Argélia, na Jordânia, no Iêmen, em todos países árabes. Esta geração assiste à revolução no seu sentido mais lídimo. A palavra andava em desuso, desde as elegias ao capitalismo, com a queda do socialismo real. Com os acontecimentos de 2011, a revolução foi resgatada dos livros de história, de volta à conversa cotidiana, não mais demodê.
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Uma revolução é sempre fresca de vivências e copiosa de elementos criadores. Mas ideólogos se apressaram em deitá-la na sua cama de Procusto, com teorias e sistemas encarquilhados. Trataram de suprimir a singularidade que faz dessa revolução um acontecimento sem precedentes. Pan-islâmica? socialista? fundamentalista? liberal-constitucionalista? nada disso.
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As tentativas de classificação são muitas e todas erram em perder de vista o essencial. O que essa revolução tem de único: no que ela recombina todas as outras, e faz irromper o absolutamente novo. Não a classificaria nem como assembleísmo, espontaneísmo ou democracia direta. Ora, mais modesto que isso, quero aprender o que os árabes inventaram. Quero descobrir o que nem nome tem, muito além de socialismo ou capitalismo — esse falso problema da geração passada. Nem um nem outro. É inclassificável.
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Por sua vez, a grande imprensa repercute o império, numa cobertura falsária, a-histórica, desinformativa. Como o império, maneja dicotomias malandras: ditadura laica x teocracia, transição ordeira (mediada pelos EUA) x caos destrutivo. O engodo opera menos ao vender soluções erradas, do que em colocar falsos problemas. Estes sequer passaram pela cabeça dos revolucionários.
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Bastam 30 minutos de assistência à Al-Jazeera para perceber o fundo do poço em que se encontra a TV brasileira e seus jornalistas “maiores”, totalmente dominados pelos falsos problemas. Na realidade o jornalismo tradicional entrou em extinção, neste tempo da comunicação pós-jornais.
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Finge-se agora se tratar somente de uma luta contra um ditador octagenário.
Assim genérica, uma dialética personificada no tirano. Grosseira simplificação. A revolução não se resume a “mera” luta contra um ditador, mas exprime o apoderamento do destino por uma geração esquecida, atrás de renda, liberdade, cidadania. Como se um regime não fosse a conjunção de diversas e sutis causas e efeitos, — que, todavia, os árabes conhecem muito bem, porque é a vida deles. Mas o império precisa desarticular o discurso revolucionário, desacoplando-o das práticas tão perigosas.
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A revolução demonstra cabalmente quão frágil é a ordem estatal e capitalista. Toda a simbologia e liturgia do poder desmorona em questão de dias, quando as pessoas desistem de participar dela. O poder constituído manipula o medo e vende a esperança, mas chega a hora em que as pessoas desesperam e a coragem cospe no medo. Desesperar-se acaba por levar à substituição do medo pela revolta, da espera pela ação, da moral comportada pela ética da democracia, da crença no futuro pelo tempo do agora. O medo muda então de lado, eis a revolução, e o sistema colapsa. A vaca se remexe, as moscas fogem. O poder soberano em toda parte compreende, assustado, o sentido real da potência da multidão. Não por acaso, se precipitam em concessões, em negociar a docilidade e clamar pela complacência.
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A revolução significa romper diques. Para lucrar e acumular, o capitalismo precisa represar desejos e frustrar amores. Tais impulsos recalcados tumultuam as consciências e não poderão ser sublimados perpetuamente. Uma hora explode e não pára mais, indo além dos limites. A revolta encontra medida em seu próprio seio e recusa quaisquer apelos ao bom tom e à prudência.
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É preciso recusar a tese de que o exército egípcio refreou impulsos mais destrutivos. Primeiro, porque o exército não passa de efeito de superfície. Dentro dele correm inúmeras divisões e conflitos, cada qual com seu corpo de relações sociais, políticas e econômicas. Segundo, porque no Egito o exército foi refém da multidão. Agiu quando e onde a multidão lhe permitiu e exigiu agir. Se evitou deturpações de alguns, foi mais como resposta à ética imanente aos revoltados, porque do contrário simplesmente não conseguiria. O exército esteve a serviço da revolta menos por condescendência ou simpatia, que por ser carreado por um turbilhão invencível, do qual não teve opção senão tomar parte.
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A revolução árabe também é balde de água fria na esquerda apocalíptica. Passaram as últimas duas décadas lamuriando a derrota, num decadentismo barroco. Todas as formas de revolta estariam capturadas. O capitalismo teria irremediavelmente fechado as portas da lei. Nada restaria à esquerda senão refugiar-se em coleções sobre o estado de exceção tornado a regra, à espera de algum evento messiânico. Quando a utopia pressupõe a espera, levanta as mãos para os céus e não contra os inimigos. Tristes criaturas e tristes paixões, em contraste acintoso à alegria e ao carnaval das ruas de Túnis ou Cairo. As ruas não anunciam verdades a um futuro longínquo, mas se povoam de potências e modos de sentir — aqui e agora.
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A revolução árabe também frustra outra esquerda. Militarizada em minúsculos partidos, julga-se encarregada de anunciar a boa-nova e guiar as massas ao reino da justiça. Tem fé num programa esquemático, e atuam para realizá-lo de modo maçônico, por meio de complôs e segredos. Dividem a sociedade em fiéis e pecadores, iluminados e iludidos, os últimos suscetíveis de conversão por panfletos, almanaques e cursos de domingo. Arrogante vontade pedagógica! ineficaz crença que a materialidade das lutas pudesse ser substituída por diagramas e esquemas.
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A verdade das lutas se faz na premência do choque de forças. Porque só a luta ensina. Jamais faltou vanguarda em todos esses dias. Se se impõem iluminados pra guiar a massa, na mesma hora as pessoas iriam para casa. Praça Tahir foi o melhor curso intensivo revolucionário do planeta. Decerto mais rico do que cem livros vermelhos ou mil aulas universitárias. O fetiche da vanguarda enfraquece o movimento, ao dissociar meios e fins e lhe usurpar ímpeto e energia.
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A revolução árabe tampouco pode ser chamada de anárquica. Pulsam formas de organização e se estabeleceu certa lógica da mobilização. Porém, isso se construiu no dia-a-dia, nas ruas e praças, nos entrechoques e escaramuças, nas incursões e evasões. A lógica não veio de cima, de um plano pronto: foi-lhe imanente. Organiza-se como um enxame: de todas as direções, sem centro ou hierarquia, onde circula um saber prático, fluido, retroalimentado.
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A grande mídia e os ideólogos da soberania estão confusos e amedrontados. Disfarçam o incômodo, mudando de assunto: geopolítica e implicações econômicas. Temem o aprendizado dos ativistas pelo globo. Temem que aprendam a essência-potência dessas lutas, que consiste no como exprimir, articular, mobilizar, propagar. Não posso falar quase nada sobre esse como, pois não vivenciei a revolução nos seus dias e noites de sangue e pedras. Mas sei que aprendê-lo será o desafio daqui pra frente. Ousar saber e saber ousar, na expressão de um filósofo italiano.
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A revolução não é só tunisiana, egípcia ou árabe, mas de todos os jovens e pobres e desejantes. Luta que é local no embate concreto de forças, mas global na proliferação intensiva de afetos e desejos. Flui pela rede mundial e deflagra novos focos pelo planeta. Já não é mais demasiado otimismo crer que pegue na Europa de tantos milhões de imigrantes e precários. A história se faz a olhos vivos e inspira uma geração nascida sob o signo da apatia e a descrença.
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4 comentários para "Revolução Árabe: só a luta ensina"

  1. Sei não meu caro Bruno,
    Vejo realmente no Oriente Médio uma real 3a via formada por vários grupos como mulheres, jovens, pobres e classe média que querem coisa heterogêneas como liberdade, comida e renda. Realmente a forma de se articular e se manifestar utilizando-se da internet e o pacifismo lembra os hackers e a contracultura. E esta terceira via mina o equilíbrio da oposição entre ditadura laica e ditadura teocrática que, na verdade era conveniente para os tiranos seculares, o fundamentalismo islâmico e o Ocidente + Israel. O argumento tácito deste raciocínio é o seguinte: a barbárie árabe só entende a linguagem da força e do medo, ou é ditadura laica ou é religiosa, escolha o menos pior.
    O que eu acho que esta 3a via formada pelos excluídos (que são maioria! absoluta da população) está reivindicando é o seguinte: nós queremos e podemos ser uma nação desenvolvida e democrática. O que quero dizer é que eles estão querendo fazer uma revolução burguesa nacionalista, querem democracia, estado de bem estar social, crescimento econômico,,, Não me parece que haja um desejo (nem mesmo tácito) de suplantar o capitalismo e sim de tronar o Egito um estado nacional soberano e desenvolvido (ou rumo ao desenvolvimento).
    Não quero dizer que vão se submeter ao Ocidente, mas sim que querem trilhar uma caminho semelhante ao da Turquia. Por isto a apreensão à direita e à esquerda por lá: do Irã a Arábia, passando por Síria e Jordânia, o poder ditatorial está muito preocupado com o levante das ruas, mas não creio que destes levantes vão surgir sociedades pós-capitalistas.
    As táticas revolucionárias são mesmo pós-capitalistas: internet, organização em rede, mobilizações sem comando central, reunião e dispersão rápida das massas etc. Mas todas as revoluções, ie, os momentos revolucionários não foram assim, rizomáticos, mágicos? Vamos ver o que virá…

  2. Bruno Cava disse:

    Salve, Leônidas,
    Onde eu disse ser contra a exploração do trabalho? sou pela luta de classes.
    Quando falo pós-socialismo, leia-se pós-socialismo real, histórico, que existiu (senão não poderia ser pós-).
    O socialismo real não passou de capitalismo de estado, que da mesma forma alienou o trabalho das pessoas, num regime de acumulação partidário-burocrático. Um Estado-plano, um modelo repressivo, que impedia a criatividade, a produtividade, a alegria. As pessoas desertaram desse socialismo, seja pulando muros dos países socialistas, seja abandonando partidos socialistas.
    Acredito que a revolução árabe mostra que existem condições de desertar, agora, do próprio capitalismo, e constituir um mundo sem alienação do trabalho e sem divisão social, um mundo pós-capitalista e pós-socialista (real).
    Abraço.

  3. Como assim, meu amigo?
    Você diz que, em sua denúncia a problemas supostamente falsos, que o que se vem produzindo na África árabe está para além do socialismo e do capitalismo.
    Mas, em seguida fala de uma revolução por “renda, liberdade, cidadania”!
    Pelo que entendo, fica-se assim muito aquém da revolução, quer dizer, da superação do capitalismo por uma forma social que não se atenha à necessidade de obtenção de renda (quer dizer, da venda de si em troca de dinheiro) e cuja liberdade torne reisível a idéia de cidadania.
    Se seu propósito é dizer que a luta contra o capitalismo não tem uma forma pré-determinada e que as tentativas anteriores devam ser tomadas como objeto de crítica e não como modelo, concordo com você.
    Para além disso, acho que é inveção. Concordo que não se deva nutrir a idéia de uma vanguarda revolucionária que se constitua em partido e toma as rédeas das massas…
    Mas, daí a dizer que a luta contra o capitalismo em prol de uma forma social que não envolva propriedade privada dos meios de produção e força de trabalho assarlaiada é uma luta ultrapassada constitui evidência de miopia teórica.

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