Moralismo, ignorância e… depressão

Espantoso declínio: no “primeiro mundo”, mescla de conservadorismo e ideias econômicas simplórias joga sociedade contra si mesma e aprofunda crise

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Por Paul Krugman | Imagem: Fernando Botero

Quantos de vocês querem pagar a hipoteca do vizinho que construiu um banheiro a mais e agora não pode pagar suas prestações? A pergunta já célebre do comentarista econômico Rick Santelli, na rede de TV CNBC, em 2009, foi para muitos o ponto de partida do movimento Tea Party. É um sentimento que ecoa não apenas nos Estados Unidos, mas em boa parte do mundo.

O tom varia, de um lugar a outro: ao escutar, há semanas, um funcionário alemão denunciando o déficit, minha mulher sussurou: “na saída, vão distribuir chicotes, para que todos possamos nos flagelar”. Mas a mensagem é a mesma: a dívida é má, os devedores devem pagar por seus pecados e de agora em diante todos viveremos de acordo com nossos meios.

Este tipo de atitude moralista explica por que estamos mergulhados numa depressão econômica aparentemente sem fim. Os anos anteriores à crise de 2008 foram marcados por um endividamento insustentável. Ele significou muito mais que os créditos de alto risco vistos ainda hoje, erroneamente, como a origem do problema.

A especulação imobiliária atingiu a Flórida e Nevada, mas também a Espanha, Irlanda e Letônia. Tudo era pago com dinheiro emprestado. Tal endividamento tornou o mundo mais vulnerável. Quando os dirigentes decidiram que haviam emprestado demais, e que os níveis da dívida eram excessivos, os devedores viram-se obrigados a cortar gastos. O movimento precipitou o mundo na recessão mais profunda desde 1930. E a recuperação, até o momento, é débil e incerta

O essencial a considerar é que, para o mundo em seu conjunto, receita é igual a gasto. Se um grupo de pessoas – os que têm dívidas excessivas – vê-se obrigado a deixar de gastar para pagar seus débidos, ou outro grupo tem de gastar mais, ou a receita despenca.

No entanto, os setores do setor privado que não enfrentam dívidas excessivas não vêem motivos para aumentar o investimento. E os consumidores que não se sobreendividaram podem conseguir crédito a taxas reduzidas – mas este incentivo para gastar mais é superado pelas preocupações geradas por um mercado de trabalho frágil. Ou seja: ninguém no setor privado está disposto a preencher o vazio criado pelo excesso de dívidas.

Que deveríamos fazer? Em primeiro lugar, os governos deveriam gastar enquanto o setor privado não o faz, para que os devedores possam pagar suas dívidas sem tornar eterna uma depressão global. Além disso, deveriam promover uma redução da dívida.

Mas os moralistas não permitem nada disso. Denunciam o gasto, declarando que os problemas de endividamento não podem ser resolvidos com mais dívidas. Denunciam a redução da dívida, dizendo ser uma recompensa para quem não merece.

E se alguém lhes assinala que seus argumentos não param em pé, enfurecem-se. Tente explicar-lhes que se os devedores gastarem menos, a economia se deprimirá, a não ser que outros gastem mais, e te chamam de socialista. No ano passado, quase todos caçoaram de John Boehner, líder da minoria do Partido Republicano na Câmara, quando declarou: “é hora do governo apertar o cinto”: quando o gasto privado se reduz, o Estado deve gastar mais, não menos. Mas desde então, o presidente Obama utilizou-se da mesma metáfora diversas vezes, prometendo completar o aperto dos cintos no setor privado com corte de gastos públicos.

Falta-lhe coragem para polemizar com as falsas ideias populares? Ou é simplesmente preguiça intelectual? De qualquer modo, se o presidente não defende a lógica de suas políticas, quem o fará?

O programa de modificação do regime hipotecário do governo – que inspirou a gracinha de Santelli – não alcançou quase resultado algum. Uma das razões é que os funcionários estavam tão preocupados em não ser acusados de ajudar a quem não merecia que ao final não ajudaram quase ninguém. Ou seja: os moralistas estão ganhando. Cada vez mais eleitores, nos Estados Unidos e Europa, estão convencidos de que precisamos de castigo – não de estímulo. Os Estados devem apertar os cintos; os devedores devem pagar o que devem.

A ironia é que em seu afã de castigar os que “não merecem”, castigam-se a si próprios. Rechaçando o estímulo fiscal e a redução da dívida, perpetuam o desemprego elevado.

Estão, na verdade, reduzindo seus empregos para fustigar a seus vizinhos. Mas não o sabem. E como não o sabem, a depressão continuará.

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4 comentários para "Moralismo, ignorância e… depressão"

  1. Paulo F disse:

    Então quer dizer que eu posso me endividar a vontade, não pagar a dívida, e então o governo vai se endividar para pagar a minha dívida !!??
    Puxa, como não pensei nisso antes !!??
    Ótima ideia !!
    Vou começar hoje mesmo, obrigado pela dica !!
    Afinal todo mundo merece uma Ferrari, não é mesmo?

  2. Kid disse:

    Muito bom o texto. Interessante divulgar este material para que outras pessoas possam ler e se informar desta faceta da situação econômica mundial através de um outro viés, que muitas vezes acaba sendo sistematicamente ignorado pelas mídias e pelas massas da população. Curioso é que, o argumento utilizado por Paul Krugman é até bastante óbvio, do senso comum, talvez tão simples que acabe por ser difícil de se enxergar a fundo. Como nas equações matemáticas ou nas reações químicas, toda matéria, valor ou energia deve necessariamente ser modificado, transformado e ocorrendo no final um balanceamento das operações ou reações, no sentido de se atingir um equlíbrio, uma estabilização proporcional do resultado. No tocante a economia, o mesmo princípio se emprega, se um lado corta gastos, outro lado deve repor os valores que vão faltar. Um Estado que se utiliza de argumentos estapafúrdios e vão contra a lógica e a racionalidade é certamente um Estado criminoso, draconiano e tirano, que além de manipular a informação que alcança a população, se encarrega de oprimir e impossibilitar soluções viáveis para quaisquer crises, sejam elas quais forem. Uma política covarde e oportunista que visa punir o devedor – que já se encontra debilitado – só serve para aumentar e aprofundar o abismo das diferenças sociais, que por si só é tanto uma causa como também uma consequência da depressão econômica, fechando perfeitamente o circulo vicioso que de longe nos alerta que o gelo em que pisamos é muito fino e pode se quebrar a qualquer instante, para qualquer um, em qualquer lugar.

  3. Renato Gianuca disse:

    O artigo de Paul Krugman é um novo alerta, a ser escutado com atenção por países “emergentes” como o Brasil. Há uma tendência visível de parte do “Primeiro Mundo”: exportar sua crise para cima de nós.
    A guerra das moedas, conforme o alerta do ministro Mantega, é um claro sinal: certamente, 2011 será um ano tempestuoso. O neo-conservadorismo parece triunfante no “Primeiro Mundo”. Mas, por lá, é a teoria do “salve-se quem puder”.
    Seria preciso dizer: do jeito atual, as coisas não vão terminar bem. Renato Gianuca, jornalista, Porto Alegre.

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